Passos que Transformam o Coração. Fabián Martín. Avgvstinvs 2024.

O agostiniano recoleto Fabián Martín (Jalisco, México, 1981) lançou recentemente, pela Editorial Avgvstinvs, o livro “Passos que Transformam o Coração”, sequência de sua obra anterior, “Batimentos de um Coração Inquieto”. Em entrevista, ele compartilha a motivação, os desafios e as inspirações por trás desta nova publicação.

Qual foi a origem, a motivação e o objetivo do seu segundo livro?

“Passos que Transformam o Coração” surge como uma continuidade natural de Batimentos de um Coração Inquieto, livro publicado pela Província de São Nicolau de Tolentino, disponível gratuitamente na internet. Naquele trabalho, apresentei reflexões iniciais que, para mim, precisavam ser exploradas em maior profundidade.

Na primeira obra, ao abordar as “idades do espírito” no homem novo, citei textos de Santo Agostinho, mas aprofundei apenas um deles. Restaram outros seis textos fundamentais que trazem insights valiosos sobre o progresso na vida cristã e sobre nossa condição de “peregrinos” espirituais.

A obra mais emblemática em que Santo Agostinho partilha sua experiência como peregrino é: As Confissões. Assim, elaborei um plano: selecionei textos de obras anteriores às Confissões, nos quais Agostinho aborda o progresso espiritual, e os utilizei para iluminar a espiritualidade presente em sua obra-prima.

Essa experiência cristã relatada por Santo Agostinho em As Confissões está profundamente conectada com seu próprio caminho existencial. Ele iniciou descrevendo suas experiências de forma gradual em outras obras e, finalmente, sintetizou-as em As Confissões, partindo de seu testemunho pessoal.

Meu objetivo com este livro é revelar a visão de Santo Agostinho sobre o que significa “ser peregrino”. Ao nos familiarizarmos com sua trajetória espiritual, acredito que podemos encontrar inspiração e força para percorrer nosso próprio caminho de fé, permitindo que Cristo transforme nosso coração e nos conduza a uma vida nova.

Essa missão de estimular a condição de peregrino impactou você como autor?

Minha formação, minhas convicções pessoais e minha vivência me levaram a compreender que a vida cristã é um itinerário discipular, um avanço constante no espírito, uma jornada pautada pelo amor, pela fé e pela esperança.

A existência humana é, por sua própria natureza, um processo existencial. Passamos por momentos de confiança, superação e renovação, mas também enfrentamos crises, lutas e resistências. Através de tudo isso, o Espírito Santo age, moldando e transformando o coração humano. Minha experiência como peregrino reflete isso: os passos que dei em direção ao amor foram aqueles que realmente me transformaram interiormente. É por essa razão que escolhi o títuloPassos que Transformam o Coração”.

Certamente não é autobiográfico, mas expressa a maneira como eu me aproximei de Santo Agostinho e me beneficiei pessoalmente de sua experiência. Aos 43 anos, posso dar testemunho de etapas vitais marcadas por crises, resistências, lutas interiores e busca de sentido… E, de forma mais humilde, de quando Deus agiu no meu coração para transformá-lo, renová-lo e torná-lo mais de carne e menos de pedra.

Ao mesmo tempo, reconheço que minha caminhada existencial e minha vida cristã nem sempre estiveram alinhadas, apesar dos meus esforços. Isso me levou a compreender que a transformação do coração é uma obra divina, realizada no tempo e na forma de Deus. O caminho do discípulo é avançar confiando no Pai, enquanto o Espírito Santo encontra maneiras de agir. Essa tem sido minha experiência e, em muitos aspectos, a fonte da minha esperança.

Já se escreveu muito sobre As Confissões. Você traz algo novo?

As Confissões de Santo Agostinho é uma das obras mais emblemáticas da literatura ocidental e cristã, amplamente lida e analisada ao longo dos séculos. Durante meus estudos, me deparei com diversas abordagens da obra: filosófica, teológica-dogmática, psicologia dinâmica, literatura universal, história, entre outras.

Desde 2009, quando iniciei meu estudo especializado em espiritualidade, adotei um método que combina a teologia espiritual com abordagens histórico-crítica e hermenêutica.

Minha contribuição é, talvez, um desvio dos estudos tradicionais. Não procuro apenas explicar a espiritualidade de Santo Agostinho, mas mergulhar nos aspectos concretos de sua experiência espiritual. Sem ser um especialista, permito que minha leitura se amplie, captando a dimensão pessoal do homem Agostinho e estabelecendo um vínculo mais íntimo com ele.

Reconheço que um especialista poderia criticar a minha falta de atenção a certos contextos mais amplos da obra. Contudo, optei deliberadamente por “ouvir” As Confissões em diálogo com a psicologia e a pedagogia, que oferecem ferramentas para explorar a profundidade de sua experiência espiritual. Essa abordagem também me permitiu compartilhar ideias com outras pessoas, em palestras e encontros, onde constatei grande receptividade e interesse.

Santo Agostinho é um mestre no gênero literário da “confessio” — a confissão. Ele une com extraordinária habilidade três dimensões inseparáveis: A confissão de louvor a Deus, reconhecendo sua misericórdia na vida do santo; a confissão de seus pecados e desvarios, permeados por um desejo ardente de amar e ser amado; a confissão de fé no Deus da misericórdia, no Cristo humilde e no Fogo da caridade que incendiou seu coração.

Essas três dimensões se entrelaçam de forma única. Retirar uma delas seria empobrecer As Confissões. E é precisamente essa interligação que permite às pessoas de coração inquieto — aquelas que buscam a verdade, a felicidade e a plenitude nas relações humanas — se identificarem profundamente com a experiência de Agostinho.

Para os leitores, incluindo a mim mesmo, o fascínio está no fato de que tudo aquilo que é profundamente humano — o bem, o verdadeiro, o belo e a liberdade — encontra, nas páginas de As Confissões, um desenlace maravilhoso.

Quais ensinamentos do peregrinar de Agostinho podem ser aplicados a nós?

Santo Agostinho é um guia e mestre no caminho do peregrino. Sua jornada espiritual e existencial foi, em primeiro lugar, um mergulho apaixonado em direção ao centro de sua vida, ao mais profundo de seu coração. O primeiro passo decisivo que transformou sua vida foi a coragem de atender ao chamado de uma voz misteriosa — uma voz que ele não sabia ao certo se vinha de fora ou de dentro. Essa voz o instigava a retornar ao próprio coração, a encarar sua verdade interior.

O santo, disperso e fragmentado, retornou ao próprio interior e ali descobriu a verdade sobre sua vida: ele era frágil, pecador e soberbo, mas profundamente amado por Deus. A partir dessa revelação, iniciou uma nova peregrinação: do coração humano ao coração divino. Essa jornada ao interior de si mesmo o levou a um encontro transformador com Cristo, que é o coração do Pai, e à descoberta de que, nos outros, também habita a presença de Cristo.

Esse retorno ao próprio coração não é um ato de egoísmo ou narcisismo, mas uma resposta à constatação de que ambições, apegos, fracassos e conflitos são sintomas de uma alma dividida. Nossa “casa interior” encontra-se muitas vezes estreita, danificada e em ruínas. O retorno ao coração é um movimento de cura, uma abertura para que o Médico do coração, Jesus, restaure e transforme essa morada interior.

Assim, a peregrinação ao próprio coração torna-se uma peregrinação a Deus e, através dele, ao coração dos outros. Essa transformação, marcada pela libertação do egoísmo e da soberba, é obra da caridade de Cristo, que faz da Igreja uma comunidade viva de condiscípulos.

Qual é, na sua opinião, o processo vital mais importante para o progresso espiritual?

A vida de Santo Agostinho se transformou completamente, seu coração foi tocado, a verdade iluminou sua alma e ele passou a enxergar a verdadeira beleza quando se encontrou com Cristo humilde, por meio da Palavra. Essa Palavra dissipou a escuridão de sua ignorância, quebrou a arrogância que o aprisionava e lhe concedeu a força necessária para abandonar a mediocridade e os autoenganos que antes o dominavam.

Acredito que o ato mais sublime e essencial no caminho espiritual é abrir-se ao encontro pessoal com Cristo. Ele fala principalmente por meio de sua Palavra, mas cabe a Ele decidir o momento e a forma em que nos fará o dom de sua presença, misericórdia e amizade.

O horizonte de toda vida cristã está em avançar nessa nova existência em Cristo. Transformar o coração e progredir espiritualmente só é possível a partir de uma experiência fundante, de um encontro vivo com Cristo, que inaugura uma relação de amor transformador.

Esse encontro não apenas define a identidade do discípulo, mas também reforça o sentido de pertença e fidelidade à Palavra. No entanto, os processos de evangelização devem recuperar a pedagogia de uma iniciação cristã verdadeiramente kerigmática e mistagógica, capaz de promover um encontro real e profundo com Cristo.

Dentro da Família Agostiniana Recoleta, os itinerários formativos para leigos e religiosos, jovens e adultos, correm o risco de se tornar vazios se não tocarem o coração em direção a Cristo, ao seu Evangelho e ao seu Reino. Esse encontro é a chave da peregrinação de Agostinho, algo que não devemos dar como garantido nem descuidar no acompanhamento.

Qual aspecto da vida de Agostinho mais o atrai pessoalmente?

Quanto mais leio as Confissões, mais sinto com intensidade que o desejo é o motor do seu processo vital. Em várias ocasiões, ele fala da doçura de amar e ser amado, que era o maior anseio de seu coração. A força e o dinamismo de seu coração inquieto tinham origem em sua capacidade de desejar.

Ele investigou ansioso sobre o amor, mas só encontrou paz quando experimentou um amor livre, gratuito e generoso. Amar e ser amado não significava agradar à sensualidade, mas invocar uma presença que lhe mostrasse sinais do desejo que Ele tinha por ele. Foi conquistado pelo Deus de Jesus Cristo, que o desejava com um desejo infinito e um amor completamente livre. Agostinho se derreteu diante de Deus, que lhe fez saborear uma luz resplandecente, uma melodia sonora, um aroma delicioso, um alimento saboroso e o abraço de uma grande paz.

O décimo livro de As Confissões é, na minha opinião, o eixo central da obra. Nele, Agostinho articula sua visão sobre a “ordem no amor” e explora o tema da purificação, que consiste na luta contínua contra o egoísmo do “homem velho”. Nessa batalha, o esforço humano encontra apoio na graça divina para manter o coração voltado ao bem e evitar o retrocesso.

É fácil acolher hoje a ideia da vida espiritual como fundamento da felicidade?

Falar de vida espiritual, mesmo em contextos cristãos, frequentemente revela percepções muito diversas, e até mesmo paradoxais. Há uma inclinação crescente a separar a vida humana da vida no espírito, como se a espiritualidade fosse algo secundário, reservado para momentos específicos, ou até um estado elevado, inacessível para a maioria, quase como um “desligar-se para conectar-se”.

Entretanto, qualquer espiritualidade que esteja desconectada da vida concreta contradiz profundamente a inspiração cristã, que se enraíza no cotidiano das pessoas reais que vivem, sonham, sofrem, esperam, amam e tomam decisões. Santo Agostinho, em sua obra e pensamento, propõe uma unidade essencial entre a vida humana e a vida cristã. Ele ensina que a espiritualidade não é algo “à parte”, mas sim a plenitude da própria existência.

A espiritualidade cristã – e, particularmente, a espiritualidade agostiniana – descreve o caminho do discípulo que vive segundo o Espírito. Nesse contexto, a vida espiritual é a jornada no Espírito Santo, um retorno ao próprio coração para encontrar o essencial: Deus presente em cada um de nós.

Essa viagem interior é, ao mesmo tempo, exigente e cativante, conduzindo-nos às perguntas mais fundamentais da vida – aquelas que nos tiram da superficialidade e da rotina. Nem todos, porém, se dispõem a enfrentar tais questões.

Alguns preferem evitar o cansaço e o desconforto de dar um sentido ou encontrar os porquês. Em nosso mundo, há um certo padrão que evita a reflexão, o silêncio, o esforço de compreender mais profundamente o que acontece e o que me acontece.

Há uma saturação de ruído e entretenimento de consumo passivo; respostas rápidas, simples e imediatas, mas incompletas e tendenciosas e, no fundo, pouco satisfatórias para uma felicidade de peso: ter tudo, não precisar trabalhar, consumir tudo o que me colocarem à frente, sensualizar constantemente…

A proposta agostiniana vai na contramão desse modelo: ela nos convida a voltar ao coração, a cultivar o silêncio, a praticar o recolhimento interior e a criar um espaço para ouvir a voz de Deus.

O caminho espiritual, portanto, exige atenção, abertura ao mistério, admiração e a coragem de questionar o que parece óbvio. Essas condições nos conectam a nós mesmos e a Deus, ativando recursos internos que nos permitem adquirir uma sabedoria prática e vital. Assim, somos convidados a viver de maneira “diferente”, transcendendo os padrões predominantes e encontrando uma felicidade verdadeira e significativa.

O carisma agostiniano-recoleto é uma fonte de vida “diferente” para os leigos?

As Fraternidades Seculares Agostinianas Recoletas vivem realidades muito diversas, determinadas por seus contextos socioculturais e religiosos, pelo tempo de caminhada, pelo acompanhamento que recebem e pelo compromisso que assumem, tanto individualmente quanto em comunidade.

Apesar dessa diversidade, há sinais encorajadores: um ambiente de confiança, esperança renovada e a disposição de assumir novas responsabilidades. Um exemplo marcante é o protagonismo crescente dos leigos na formação de outros leigos.

Contudo, persiste uma lacuna importante: a formação de formadores. Embora as novas fichas de Peregrinos III e a Instrução para o Acompanhamento nas Fraternidades Seculares sejam recursos valiosos, os líderes que assumem a tarefa de formar novos candidatos ainda enfrentam grandes desafios, muitas vezes sem preparação adequada.

É fundamental que, nos próximos anos, sejam criados materiais específicos para os formadores, ao mesmo tempo em que se expande o acervo de materiais gerais. A experiência proporcionada pelo novo plano de formação para os religiosos pode desempenhar um papel crucial na viabilização desse objetivo.