Grupo de cristãos com Julián Sáenz, Jesús Samanes, Javier Ochoa, Guillermo Ugarte e Arturo Quintanilla em 1933.

Os missionários agostinianos recoletos em geral conseguiram adentrar na alma chinesa, por isso souberam respeitar e valorizar as manifestações culturais e tradições do povo chinês, condição indispensável para realizar sua missão de evangelização.

Enculturação na obra missionária

A enculturação é uma parte central da missão evangelizadora da Igreja, um processo de diálogo e transformação mútuos, onde a Igreja não só leva o Evangelho a novas culturas, mas também permite que estes povos e culturas evangelizados entrem no acervo da universalidade católica da Igreja. A enculturação é uma exigência de fé. Uma fé que não se converte em cultura é uma fé não plenamente vivida.

O processo de enculturação é demorado e complexo, envolvendo etapas de comunicação e assimilação do Evangelho por meio de um diálogo intercultural e interpessoal. Começa com a introdução da vida e da mensagem cristã numa cultura, coincidindo com o início da evangelização, e estende-se até à transformação íntima dos valores culturais mediante a sua integração no cristianismo.

No coração deste processo está o mistério da Encarnação, onde, como Cristo se fez homem num contexto sociocultural específico, a Igreja procura encarnar o Evangelho nas culturas autóctones. Este caminho, traçado por Cristo e seguido pelos missionários, é um caminho de abertura, aprendizagem e adaptação. Mediante a enculturação, os missionários, e com eles a Igreja que representam, “convertem-se em um sinal mais compreensível do que já é e em um instrumento mais eficaz de missão”.

Porém, a finalidade da Encarnação é a redenção, trazer a vida nova da graça após um processo de purificação. A enculturação é também, portanto, um processo de discernimento, purificação e recreação, onde o evangelho purifica a cultura local de seus aspectos de pecado. Assim purificada, a igreja local exprime a sua fé e os diversos elementos da tradição da Igreja de novos modos, enriquecendo assim a Igreja universal.

A evangelização enculturada vista por nossos missionários

No contexto da missão de Kweiteh / Shangqiu na China, os missionários agostinianos recoletos enfrentaram o desafio de contribuir para encarnar o Evangelho em uma cultura rica e milenar. Seguindo sua própria experiência missionária e guiados pelos ensinamentos da Igreja, nossos missionários chegariam a expressar que a missão deve ser obra de evangelização “enculturada” que respeite e siga os modos culturais dos povos, e com a virtude do Evangelho edifique neles uma cultura autóctone cristã, purificada apenas de seus elementos e estruturas de pecado. Foi o que disse Monsenhor Arturo Quintanilla:

A obra missionária deve ser obra de adaptação no meio social, no tempo e lugar, onde se desenvolve. Cada povo tem o seu modo característico de ser, os seus costumes, a sua cultura, etc., e o missionário não deve tender a destruir nada disto, mas a adaptá-lo ao grande molde do evangelho, dentro do qual cabem todos os povos, [“Ide a toda parte, disse Jesus aos seus discípulos, e pregai o Evangelho a toda criatura”, e neste mandato está fundada a universalidade da Igreja e, ao mesmo tempo a sua força de adaptação a toda e qualquer pessoa humana. Vêm depois os diferentes meios de pregação e de evangelização e de levar à prática o mandato de Jesus Cristo e neste aspecto o espírito missionário há de ser amplo, compreensivo, generoso. Fora aquilo que vai claramente contra Deus ou contra a moral fundada nos princípios do decálogo, nada se deve destruir. A missão da Igreja e, portanto, a dos missionários, não deve ser in destructionem sed in aedificationem: não para destruir, mas para edificar.

Esta obra não só deve ser enculturada, mas também “adaptada” aos seus diferentes tipos de interlocutores, pois a obra de evangelização, “fora os casos singularíssimos, milagres da Graça, dizemos, que a obra evangelizadora dever ser mais ou menos adaptada às disposições ou adaptação dos indivíduos para poderem assimilá-la”. Conforme este modo de ver, os missionários distinguem segundo a sua própria experiência entre as pessoas simples e rurais, e as pessoas de cultura e as pessoas com menor cultura, assim como a juventude. Para os primeiros, o método evangelizador tradicional desenvolvido pelos missionários é muito eficaz, mas para os segundos é necessário introduzir-se no mundo da cultura e, sobretudo, das escolas.

Por isso, no que diz respeito aos métodos concretos de realizar o mandato missionário, “não devemos ser exclusivistas; cabem todos os que sejam razoáveis e melhor se acomodem ao modo de ser e costumes destas pessoas.” Como diria o padre Jesus Samanes:

O que fazer? Descalçar-se para poder andar por esta terra pagã, isto significa renunciar o que de mais importante temos, os nossos gostos, e como São Paulo, obra do grande prodígio de caridade de fazer-se tudo para todos para salvar a todos, com o olhar em Cristo, que é quem nos há de dar o devido valor. […] Cada povo tem seus costumes, sua arte, sua civilização, que é preciso respeitar; e em nenhum lugar mais que na China, que se gloria de ter uma civilização antiga, deve o missionário fazer-se tudo para salvar tudo.

A enculturação dos missionários agostinianos recoletos na cultura chinesa

Proceso de adaptação após o encontro de dois mundos

Com a chegada dos missionários à missão, estes enfrentaram um processo de adaptação a um mundo novo em todos os aspectos. Desde a mera adaptação física ao clima, às refeições, à indumentária, passando pela aprendizagem da língua e da cultura, até ir adentrando-se na alma de um povo.

Um mundo novo, totalmente diverso, se não contrário, ao que na sua vida viu e viveu. Não é apenas a paisagem, são os costumes, o caráter, a cultura, em uma palavra, a alma chinesa. Não poderá chegar ao coração desse povo, ainda que consiga dominar a língua com seus complicados ideogramas e suas estranhas expressões, se não chegar a assimilar também essa alma chinesa. Terá que transformar sua própria alma para obter o que o primeiro missionário colombiano na China em expressivo neologismo chamava chinificar-se.

A presença dos catequistas nativos foi de grande ajuda para superar as barreiras e dificuldades culturais com que naturalmente se encontravam os missionários. Estes faziam de ponte, de intermediários que pavimentavam o caminho de aproximação com os outros e que favoreciam a resolução dos assuntos da vida ordinária.

Assim, os missionários relatam como no momento de sua chegada à missão havia uma infinidade de coisas que lhes pareciam muito estranhas e às quais pouco a pouco foram se moldando, até que no final lhes pareciam normais. Como as vestimentas que lhes pareciam estranhas, ou o fato de não beber água, mas chá leve, o pão chinês cozido no vapor e sem sal, os fortes cheiros de alho e alho-poró que a princípio quase os derrubavam e que depois já não notavam.

Os religiosos acomodaram-se aos costumes dos missionários vestindo a toga chinesa com o colarinho romano, permitindo as vestes laicais quando não pudessem de outra forma transitar ou permanecer confortavelmente nos lugares para onde deveriam ir.

Outro dos sinais característicos dos Missionários da China era deixar a barba estilo chinês. Os próprios missionários descobrem o sentido cultural que tem e a importância para o religioso de aparecer aos olhos dos chineses com tal aparência. Segundo os missionários, em um artigo de sua revista missionária, não se concebe na China um homem sem uma bela barba. Além disso, esse aspecto cultural, como quase tudo na vida chinesa, era regulado pelo costume e não era deixado para a iniciativa pessoal. Só quem tinha netos ou era chefe de família tinha o privilégio de usar barba. Sendo sinal de idade madura, a barba inspirava confiança e estima, supondo em quem a portava sabedoria e experiência, por isso as pessoas ao vê-los os chamavam de anciãos. Quando um homem mantinha ou deixava a barba após a morte de sua esposa era sinal evidente de que não queria passar para segundas núpcias, e se pelo contrário raspasse a barba, era sinal de que queria tomar esposa novamente.

Portanto, ao deixá-la crescer, os missionários ostentam o rótulo de que não estão disponíveis, que não pretendem casar, mas que renunciaram ao mundo para guardar o celibato, aplicar-se ao estudo e à perfeição, e dedicar-se também a procurar o bem do próximo.

De modo semelhante, embora diverso, os próprios habitantes do lugar deviam adaptar-se também à presença dos estrangeiros e à sua diversidade em inúmeros aspectos. O início deste encontro era sempre marcado pela curiosidade para com o estranho. Os missionários tiveram que viver esses tipos de experiências que descrevem com graça e humor:

Ao sair pelas ruas, começavam a nos cercar uma turba de crianças, que ia crescendo conforme avançávamos, até chegar a se contar cerca de quarenta. Consequência de tudo isso era, que se espreitavam às portas até os de vida errante, para ver o espetáculo curioso de três europeus rodeados por toda aquela manada de pequenos selvagens, que não só nos atrapalhavam o passo, senão que se permitiam de quando em quando nos tocar e nos analisar dos pés à cabeça, como se fôssemos heróis caídos de Marte, sendo inúteis para evitar esses desaforos, ameaças e golpes, pois, se a princípio se dispersavam como um bando, não tardavam em se aproximar de novo se reunindo cautelosamente.

Possivelmente, como uma daquelas crianças vivazes e curiosas, que contaria na época sete anos quando os missionários chegaram em 1924 a seu povoado Palichoang, fosse o que depois se tornaria religioso e sacerdote agostiniano recoleto, o padre Lucas Yuo. Ele nos conta, do ponto de vista dos nativos, o que supunha o encontro com os missionários:

Os habitantes nunca tinham visto em sua vida um estrangeiro de olhos azuis e profundos, de narizes longos e elevados, de cabelo castanho; o mais curioso era para eles, quando vinham cumprimentá-lo, ou melhor, vê-lo: não sabia falar, ou somente pouquíssimas palavras. Então todo o povo, homens e mulheres, adultos e crianças, vinham ver o estrangeiro. Quando o padre missionário chegava ao povoado, toda a vida dos habitantes mudava em algo, e festejavam a chegada do estrangeiro; com máxima curiosidade falavam: é estrangeiro (sic), pensando sobre a finalidade e motivo de sua chegada. Pois o padre missionário naqueles tempos era um espetáculo muito grande. Felizmente; aproveitando essa ocasião de curiosidade, o padre podia aprender a língua e explicar-lhes o motivo pelo qual deixou a sua pátria e veio parar ali.

Primeiras celebrações de Natal

Neste encontro entre duas culturas, produziu-se uma curiosa história em relação com a celebração do Natal que nos ajuda a compreender o processo de adaptação e enculturação que devem fazer os missionários para que a sua ação pastoral e apostólica seja significativa no lugar para onde vão, e por sua vez possam descobrir nos novos modos culturais dimensões novas que enriquecem a compreensão e vivência genuína do mistério cristão.

Para os missionários que vão para a terra de missão, a celebração do primeiro Natal é um momento em que a distância e o choque cultural se tornam mais evidentes. Esta experiência foi vivida de forma diferente pelos padres que estavam em Kweiteh e pelos dois padres que já haviam saído para os postos de missão: os padres Mariano Gazpio e Mariano Alegria.

Os três padres restantes da primeira missão e os quatro padres recém-chegados há apenas um mês prepararam e solenizaram a celebração do Natal em Kweitehfu. Os missionários organizaram a Capela na véspera à tarde colocando em uma manjedoura uma imagem do Menino Jesus trazida da Espanha por um dos missionários. Presidiu a missa o padre Francisco Xavier Ochoa, os frades cantaram em coro a missa de Angelis acompanhados ao harmônio pelo padre Luís Arribas. No final da missa, os frades começaram a beijar a imagem do Menino Jesus enquanto cantavam canções de Natal, ao estilo da Espanha. Vamos ver como o padre Julião Sáenz descreve tudo isso:

Uma vez terminada a Missa, começaram a beijar o Santo Menino, aproximando-se a beijá-lo todos os que ali estavam presentes. Esta cerimônia era completamente nova para muitos deles pelo que ali se viu; pois em vez de beijar a criança, o que faziam era uma ou mais inclinações, exatamente o que fazem quando se cumprimentam mutualmente, e até se deu o caso, de que algum deles levasse na boca algumas palinhas da manjedoura, acreditando sem dúvida, que os demais haviam feito o mesmo.

Este exemplo curioso e engraçado mostra a dificuldade de se despojar de formas culturais que estão muito arraigadas nos missionários, e a dificuldade de entender que os outros não pudessem entender e compreender o que lhes parecia mais natural.

A celebração do Natal dos irmãos que estavam sozinhos no campo, nos recém-fundados postos de missão, foi muito diferente da de Kweiteh; humanamente tão diferente do que estavam acostumados e que grande importância tinha para eles!

Durante a Missa, como nos anos anteriores, nada de canto, canções de Natal ou pandeiros; nem via no altar esse esbanjamento de luzes e flores com que se costuma nas Filipinas e na Espanha enfeitar o altar-mor.

Este choque brusco ao qual não estavam acostumados os levou, no entanto, a viver de um modo mais especial, mais profundo o mistério que celebravam. No despojamento de suas próprias formas culturais, no encontro com a simplicidade e a pobreza, adquiriram mais clareza para captar a profundidade do mistério e a beleza da fé profunda dessas pessoas simples. Escutemos estas profundas palavras do Padre Alegria:

Uma capela de nove metros de comprimento por quatro de largura, ao norte um altar com seis castiçais, uma lâmpada que espalha seus trêmulos raios pelo recinto, dando-lhe o aspecto que deveriam ter tido as catacumbas dos primeiros cristãos, alguns quadros pelas paredes, e nada mais. Tudo respira pobreza naquele lugar sagrado. [… No entanto, aqui estão estes poucos filhos teus, confessando-te rei do céu e da terra no mistério que se doou no presépio de Belém. Ali foram os pastores, rústicos e ignorantes, os que te adoraram após te conhecerem, aqui também são os humildes os que se prostram diante de Ti; ali foi um presépio coberto de palhas que te recebeu das entranhas de Tua Virgem Mãe, e aqui tens uma mísera cabana por morada; foram então os grandes da terra os que não te confessaram, e são aqui os potentados os que não te conhecem. “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”. Sim, a paz, que é dom do céu, para eles; a paz em suas consciências, a paz em suas famílias, a paz em tudo. [… Esta pobreza, este silêncio, esta solidão, tiveram a virtude de elevar a alma mais acima do que os ruídos, as músicas e as alegrias. A rusticidade de quanto me cercou foi representada como uma reprodução da gruta de Belém, a visão dos cristãos ajoelhados e entoando cânticos de alegria diante da manjedoura do recém-nascido me transportaram em espírito até as catacumbas dos primeiros cristãos. Uma e outra predispuseram a minha alma para saborear, como nunca, toda a doçura deste mistério de amor.