No sábado, 22 de maio, o boletim da Sala Stampa da Santa Sé publicou a promulgação de decretos da Congregação para as Causas dos Santos, entre eles o reconhecimento das virtudes heroicas do Venerável frei Mariano Gazpio, agostiniano recoleto.

No último dia 22 de maio, o Papa Francisco recebeu em audiência o Cardeal Marcello Semeraro, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, a quem autorizou a publicação, entre outros, e textualmente:

“As virtudes heroicas do Servo de Deus Mariano Gazpio Ezcurra, sacerdote professo da Ordem dos Agostinianos Recoletos, nascido em Puente la Reina (Espanha) dia 18 de dezembro de 1899 e falecido em Pamplona (Espanha) dia 22 de setembro de 1989”.

É um passo muito aguardado e muito significativo no reconhecimento oficial de sua santidade. Por trás deste reconhecimento está o trabalho de uma equipe de agostinianos recoletos que reconstruíram a vida de Mariano Gazpio, recolheram testemunhos, revisaram seus escritos e bateram às portas da Igreja local, em um primeiro momento, e da Igreja Universal, em um segundo momento, para iniciar os processos e mecanismos pelos quais nós católicos reconhecemos em algumas pessoas a marca de Deus e sua misericórdia para com a humanidade.

O agostiniano recoleto Gabriel Robles (Cidade do Panamá, 1962) é, desde junho de 2018, o postulador das causas de canonização da Ordem. Ex-aluno do Colégio Santo Agostinho em sua cidade natal, professou como agostiniano recoleto aos 23 anos de idade e foi ordenado sacerdote em 1989. Desde então, trabalhou na República Dominicana, Espanha, Panamá e Itália.

Queríamos que ele nos explicasse o significado deste recente reconhecimento pela Igreja de um dos religiosos da Província de São Nicolau de Tolentino, que tem em sua biografia quase todos os aspectos do serviço à Igreja que um agostiniano recoleto pode fazer: missionário na China, formador de religiosos e diretor espiritual.

Frei Gabriel, o que é um postulador?

Ele é aquele que representa perante a Congregação para as Causas dos Santos a parte “autora”, ou seja, as pessoas ou instituições que solicitam e promovem que um fiel cristão falecido com reputação de santidade seja declarado santo pela Igreja.

No caso das Ordens religiosas, é costume confiar esta tarefa a um de seus membros em todas as causas de canonização dos religiosos de sua Ordem. O Prior Geral confia ao postulador os estudos preliminares e o acompanhamento do processo.

Quais são as etapas envolvidas neste processo?

Começamos buscando alcançar a certeza moral de que a pessoa proposta viveu as virtudes de forma heroica e que, além disso, sua fama de santidade é certa entre o povo de Deus. Esta parte é informativa e é realizada em duas etapas: primeiro na Diocese onde o religioso faleceu e depois em Roma, com a Congregação para as Causas dos Santos.

A partir do momento em que começa um processo de canonização, o protagonista é chamado de “Servo de Deus”. Exceto no caso de martírio – no qual, uma vez demonstrado, pode-se passar à beatificação – uma vez terminado o processo na Diocese, eles são enviados à Congregação para as Causas dos Santos, onde se dá continuidade aos estudos.

Quando a Congregação verifica estas virtudes, apresenta o caso ao Santo Padre para que, se ele julgar necessário, possa fazer a “declaração da heroicidade das virtudes”. Este é o passo exato que aconteceu no sábado passado e, com ele, o frei Mariano Gazpio, até agora qualificado como Servo de Deus, passa a ser chamado de Venerável. No entanto, ele ainda não foi declarado beato e ainda não pode receber culto público.

O que significa este novo passo no processo do frei Mariano Gazpio?

Tecnicamente, no último dia 22 de maio, houve um reconhecimento oficial na Igreja de que o frei Mariano Gazpio viveu heroicamente as virtudes teológicas (, esperança e caridade), assim como as virtudes cardeais (prudência, justiça, temperança e fortaleza). Todos os cristãos são chamados a viver estas virtudes, mas nem todos nós o fazemos com a mesma constância e qualidade. Agora podemos dizer com certeza que o frei Mariano Gazpio o fez ao longo de sua vida e é considerado digno de veneração, ou seja, de respeito no mais alto grau por suas virtudes.

Este é um detalhe muito importante, porque a santidade na Igreja é, antes de tudo, uma graça de Deus. O santo é aquele que vive fundado em Deus e de Deus ele recebe sua força para se manter. Quem viveu desta maneira merece reconhecimento e veneração porque é um lembrete de que cada um de nós pode, com a graça de Deus e se for dócil a ela, viver desta maneira também.

Assim, quando o Papa Francisco fez a referida declaração, frei Mariano Gazpio já era “Venerável”. De acordo com a RAE, é o “primeiro título concedido pela Igreja Católica àqueles que morrem com reputação de santidade, e que é comumente seguido pelo de beato, e finalmente pelo de santo”.

Quais são os próximos passos?

Para a declaração como beato, normalmente é necessária a confirmação de um milagre realizado através da intercessão da pessoa em processo; uma vez declarado beato, será necessária a confirmação de outro milagre para a declaração como santo.

Ambos os atos ficam a critério do Papa. Os milagres são sempre obra de Deus e devemos obter a certeza de que um suposto milagre foi feito devido à intercessão da pessoa em processo de canonização. Quando há suspeita de um possível milagre, haverá um processo informativo que, como no caso das virtudes e da reputação de santidade, começa na Diocese onde o suposto milagre ocorreu, e depois continua em Roma.

Esta declaração de “Venerável” tem algum efeito prático?

Certamente que sim. Do ponto de vista psicológico e sociológico, todos nós precisamos de “modelos de identificação” que nos ajudem a embarcar no caminho da vida com segurança, ou pelo menos com uma persuasão bem fundamentada de que não estamos no caminho errado.

Se tivéssemos que começar sempre do zero, não faríamos muito progresso e desperdiçaríamos uma boa parte de nossa vida, privando a nós mesmos e aos outros de muitas coisas boas. É por isso que para a Família Agostiniana Recoleta esta declaração do padre Mariano Gazpio como Venerável é um estímulo para reconhecer que é possível viver virtuosamente, porque alguém a viveu “em nosso meio”. Nós, em nossas próprias condições, podemos imitá-lo.

No final, isso significa que aqueles que vivem fundamentados em Deus e são coerentes também são dignos de reconhecimento. Não esqueçamos que ser reconhecido tem a ver com ser valorizados, e se não formos valorizados, nossa vida perde sentido: quem quer uma vida na qual se é marginalizado como pessoa?

Para a Igreja, é sempre uma boa notícia saber que um de seus membros conseguiu viver coerentemente sua fé, como testemunha do poder transformador do evangelho de Jesus. É algo que nos encoraja e nos enche de satisfação e, porque não dizê-lo, de orgulho saudável.

Que aspectos da vida de Mariano Gazpio lhe causaram mais admiração?

Há aspectos que, embora surpreendam e causem admiração, também são imitáveis e, portanto, praticáveis. Por exemplo, seu senso constante da presença de Deus e sua vida de oração; sua dedicação às suas atividades com profundo senso de responsabilidade; sua capacidade e disponibilidade para iniciar novos caminhos na vida; sua obediência filial e amorosa às disposições da Igreja; sua capacidade de superar seu próprio temperamento e escolher a simplicidade e a humildade; sua capacidade de reconhecer algo de bom em todos e não se deixar levar pela crítica a ninguém, mesmo àqueles que nos fizeram mal.

Estes são aspectos muito variados que se encaixam no enigma de uma existência fundada plenamente em Deus. A espiritualidade dele não é mais exatamente a nossa, no entanto, estes aspectos não deixam de ser inspiradores e desafiadores para colocar em prática hoje.

Por exemplo, se um fiel não consegue sentir a presença de Deus em sua vida, sua fé pode se tornar um livro de receitas de doutrinas e orações, às vezes mal fundamentadas. Se não vemos Deus presente no que fazemos e, especialmente entre nós, manter a fé pode ser um esforço impossível da vontade. É como remar no mar em busca de terra, mas com um horizonte sem fim onde a terra nunca aparece.

Frei Mariano foi caracterizado por uma profunda vida de oração, já em seus anos de formação, desenvolvida na missão na China e durante a perseguição; bem como, nos conventos de Monteagudo e Marcilla, na comunidade e na solidão. A oração é sempre possível, na adversidade ou na prosperidade, porque Deus está sempre conosco.

A fecundidade de seu apostolado e a lembrança que ele deixou em tantos que se referiam a ele como um “santo vivo” é surpreendente. Algo que nos chama a atenção é o fato de que antes de deixar a Espanha sua experiência de vida se restringia a um ambiente rural muito limitado, mas isso não o impediu de uma enculturação impressionante em um mundo situado nos antípodas do que ele conhecia.

Para nós religiosos, sua capacidade de dedicação e devoção às tarefas que lhe foram confiadas, seu profundo senso de responsabilidade à frente de uma paróquia ou de uma escola de catequistas, ou colocar selos e levar cartas aos correios, é muito inspirador, e além dessa constância, essa vontade de mudar os destinos e de começar um novo modo de vida, uma forma de não estar satisfeito com o que se tem, mas de ter um espírito livre para ir aonde a Igreja precisar de nós.

Um aspecto maravilhoso foi sua sensibilidade para com o Magistério da Igreja. Apesar das mudanças que o Vaticano IIsignificou para alguém como ele, aceitou a nova sensibilidade da Igreja com uma obediência consciente e, eu diria, cooperativa; uma docilidade que nada tem a ver com obediência cega, mas com ver e viver a presença de Deus na Igreja.

Também fiquei impressionado com sua contínua “auto reciclagem”, seu conhecimento de seu próprio caráter e sua opção pela simplicidade, por sempre procurar e encontrar algo de bom e valioso nos outros. Ele nunca se deixou levar pelo demônio dos mexericos e das críticas, como diria o Papa Francisco. Ele sabia como reconhecer o mal, mas não sabia como amaldiçoar, nem mesmo aquele que lhe havia feito esse mal.

O que podemos fazer de agora em diante para promover sua figura?

Promover o reconhecimento de alguém não é marketing. Não estamos anunciando um “produto”, mas compartilhando um “resultado certo e comprovado”; não algo, mas alguém cuja vida e exemplos são acessíveis e imitáveis para nós. A primeira coisa, portanto, é estar convencido de que apresentar aos outros a vida de um irmão como o frei Mariano não é irrelevante.

Certamente, a beatificação será impossível se não dermos a conhecer sua vida. São Paulo disse com referência a Cristo:

“Porque todo aquele que invoca o nome do Senhor, será salvo. Ora, como poderão invocar aquele no qual não acreditaram? Como poderão acreditar, se não ouviram falar dele? E como poderão ouvir, se não houver quem anuncie? Como poderão anunciar se ninguém for enviado?” (Rm 10,13-15).

Esperar a beatificação do frei Mariano Gazpio “cair do céu” não só é extremamente passivo, mas também desrespeitoso para com Deus, de quem esperaríamos que ele “quebrasse o galho”… E isso é muito confortável, o que não se encaixa bem em ser cristãos, e nem mesmo religiosos agostinianos recoletos.

Não estou falando de uma tarefa “intelectual”, multiplicando as publicações, embora elas sejam muito necessárias, mas, sejamos honestos: elas são distribuídos “copiosamente” entre os fiéis? Entre nossos próprios parentes e amigos? Além disso, nós mesmos sabemos algo sobre sua vida, já lemos alguma coisa sobre ele?

Temos que propô-lo em nossas atividades pastorais. Não se ama o que não se sabe; bem, que dificuldade há em torná-lo conhecido dos grupos de oração, das Fraternidades Seculares, das JAR; dar o nome de uma nova sala; criar uma bolsa de estudos com seu nome para pessoas com recursos escassos; formar ou promover grupos de solidariedade com emigrantes inspirados por sua pessoa e trabalho… Há uma criatividade infinita para isso.

O que o Pe. Mariano Gazpio representa para o povo do século XXI?

Além de algumas das coisas já mencionadas, penso que o principal é perceber que na Igreja a relação dos fiéis com os santos envolve três aspectos inter-relacionados: veneração, imitação e intercessão.

Às vezes este último assume maior importância e preponderância, e vemos até mesmo aqueles que procuram santos “milagrosos’, mas todo santo, além de ser um intercessor válido, é digno de veneração precisamente porque sua vida tem sido uma vida de amizade com Deus, de encontro constante com Ele e de compartilhar essa amizade com os outros.

Existe o aspecto que mais deve nos desafiar: a imitação. Ele não é um extraterrestre, um caso isolado, alguém mais para admirar do que para imitar. Na imitação está o grande valor dos santos para os fiéis, para sustentar cada vez mais nossa vida em Deus e deixá-lo transformar; cooperar com sua graça e deixar-nos guiar por Seu Espírito.

Frei Mariano Gazpio observa que não há nenhuma condição de vida difícil ou complicada o suficiente para nos impedir de estar com Deus, de procurá-lo e encontrá-lo no que fazemos; e que ser dócil a Deus e nos disciplinar nesta docilidade dá frutos de paz interior e serenidade, de serviço e dedicação ao bem comum.

E também, por que não dizê-lo, dá frutos de reconhecimento e apreciação dos outros. Muitos dos que viveram com frei Mariano encontraram nele um irmão pronto para acolhê-los, especialmente como confessor ou orientador espiritual. Aqueles que foram seus noviços guardam memórias edificantes que brilharam nele e que lhes fizeram muito bem.

Que conselho você pode nos dar a partir de seu conhecimento do Venerável Mariano Gazpio?

Eu encorajo a todos a conhecerem a figura deste bom frade, missionário dedicado e homem de oração. Encontrarão muitas coisas que lhe darão alimento para pensar e o farão questionar quão heroicamente ele viveu as virtudes em suas circunstâncias concretas, cheias de limitações e desconfortos.

E diante do que pode parecer estranho em seu estilo de vida, por causa de seu contexto social e cultural tão diferente do nosso, não fiquemos anedóticos. Ao invés disso, perguntemo-nos como viver estas virtudes hoje, em nosso próprio ambiente e circunstâncias.

Se conseguirmos fazer isso, teremos encontrado no frei Mariano um bom amigo que nos encoraja a percorrer na fé nossa própria vida na presença de Deus, assim como ele fez.