Safra e processo tradicional da mandioca na Amazônia brasileira.

No ano do Sínodo da Amazônia, queremos recuperar a memória e o testemunho de Florentino Zabalza, agostiniano recoleto e bispo da Prelazia de Lábrea (Amazonas), de 1971 a 1994, cujo legado recuperamos trazendo à luz suas memórias reveladas pela primeira vez ao grande público por meio do site: AgustinosRecoletos.org.

Não me lembro com certeza, mas certamente quando estava na Colômbia, escrevi algo nas minhas cartas sobre a macaxeira. Desde que estive no Brasil, em várias ocasiões mencionei e disse algo sobre a mandioca. Ambas as palavras correspondem à mesma planta que, aqui, mais do que na Colômbia, constitui o pão diário, principalmente para os pobres. Esta crônica ou carta é, portanto, dedicada à mandioca, seu cultivo e sua utilidade.

O dicionário português que tenho em mãos, quando fala de mandioca, traz algumas palavras ainda difíceis de escrever e mais de ler: Euphorbiaceae, dicotiledônea e outras como ela, com as quais quer indicar o tipo de planta à qual pertence.

Eu não queria pensar nesse detalhe; nem queria gastar tempo descobrindo o lugar de sua origem, embora, a julgar pela lenda que eu vou transcrever, é de origem americana.

A lenda a que me refiro foi lida por mim há muito tempo em um livro que não está mais em minha posse. Não a posso repetir literalmente (então não é transcrição) e vou me limitar a dizer como me lembro.

Muitos anos atrás vivia em uma tribo selvagem uma índia notável por sua beleza e bondade. Ela era a mais linda e bondosa da tribo. Quando estava pronta para casar, buscaram para ela o mais lindo esposo entre os índios, o mais hábil em caça e pesca, o mais corajoso na guerra. Contudo, para a surpresa de todos, a jovem índia declarou que seu desejo não era o de casar, e sim de permanecer virgem.

Pensando que o escolhido pelos chefes para ser seu marido não realizaria os desejos de seu coração, eles a deixaram livre para se casar com quem ela quisesse, mas a índia continuou a recusar e, cansados de insistir, a deixaram em paz.

Depois de alguns meses, a jovem apareceu grávida, o que causou um grande escândalo na tribo. Forçada pelos chefes a se explicar, a índia declarou que havia concebido diferente das outras mulheres, algo que, depois de algum tempo, seria a salvação de sua terra natal e sua raça.

O tempo necessário passou e a jovem índia deu à luz uma criança, que cresceu dotada das melhores qualidades físicas e morais.

Passaram-se anos e grandes calamidades, guerras, derrotas e epidemias caíram sobre aquela tribo. Os chefes e anciãos aconselharam a morte daquele jovem que veio ao mundo em circunstâncias tão incomuns, a quem atribuíram os males que os afligiam.

Todos concordaram e exigiram o comparecimento do filho da virgem para comunicar a sentença de morte, que ele recebeu sem impedimentos. Uma vez morto entre as dores mais terríveis, eles entregaram seu corpo para a sua mãe enterrá-lo.

Depois de alguns meses, eles viram uma planta, até então desconhecida para eles, crescer no túmulo do jovem e isso chamou poderosamente a atenção dos chefes que, chamando a mãe, lhe perguntaram:

  • Que semente você enterrou no túmulo do seu filho?
  • “Nenhuma”, ela respondeu. A tumba não contém nada diferente dos restos mortais do meu filho, mas esperem e descobrirão a resposta para a pergunta e a explicação para surpresa de vocês.

Quando a planta chegou ao seu desenvolvimento completo, eles abriram a tumba e, em vez do cadáver, encontraram alguns tubérculos brancos como a neve: era mandioca.

A mãe virgem, dirigindo-se aos homens de sua tribo, disse-lhes:

— Se no futuro passarem fome, vocês serão os culpados, já que esta planta pode se multiplicar sem muito trabalho e lhes dará um alimento saudável e substancial que lhes dará força para lutar contra inimigos.

Então, em linhas gerais, essa é a lenda. Ainda me lembro que o autor daquele livro encontrou semelhanças entre esta lenda da mandioca e nossa religião. É verdade que existe tal semelhança? Uma mãe virgem (Maria), um filho maravilhoso (Jesus) que morre sem reclamar no meio de dores terríveis e que se torna alimento, Eucaristia, para lutar e superar os inimigos.

A planta pode atingir até dois metros e meio de altura. Seu tronco, que em uma certa altura é dividido em vários ramos, pode ter três, quatro e até cinco centímetros de diâmetro.  Quebrado em pedaços do tamanho de um palmo, se enterrado, dá origem a uma nova planta.

A fruta, a parte comestível, é a raiz, os tubérculos, o tamanho de uma beterraba média, mais alongado e sempre mais grosso ao lado do tronco. Cada planta dá um número de quatro, seis ou mais raízes, ou tubérculos. Seis meses, para as espécies mais comuns e um ano ou mais para outras espécies, é o tempo do plantio até uma nova colheita.

É cultivada nas praias dos rios e também nas terras altas, naquelas que não inundam no inverno: é plantada às margens dos rios no mês de setembro e colhida em janeiro ou fevereiro. Em terreno alto pode ser plantada em qualquer mês do verão, que aqui dura seis meses.

Para isso, é feito uma pequena cova de menos de um palmo de profundidade, nela é colocado um palmo de tronco de mandioca e já está plantado. Depois de alguns meses, será necessário capinar ao redor; e até que seja hora de recolher os tubérculos este será o único trabalho a ser realizado.

As plantas cultivadas nas praias dos rios são deixadas em terra no período de secas. À medida que a água sobe e chega à plantação, ela é arrancada. Há anos em que a enchente do rio é tão rápida que já testemunhei pessoas arrancando mandioca com água até o joelho; e eu sei de muitos que perderam parte da colheita porque não tiveram tempo para arrancá-la.

Eles não regam, nem têm muitas possibilidades de fazê-lo. Se o verão dura muitos dias sem cair uma gota de água, a mandioca não cresce e isso pode gerar um ano de escassez e até fome.

Uma vez arrancadas, eles a colocam em canoas com água ou em outros recipientes feitos para isso por dois ou três dias, de modo que fermenta e amolece; então, facilmente, com a mão sua casca-grossa é aberta e com um pequeno aperto eles fazem a massa interna sair; esta massa é pressionada para remover toda a água e umidade possível e, em seguida, em um grande recipiente de ferro no fogo, a torram até que esteja ao gosto de cada um.

Uma vez torrada, a massa de mandioca permanece como seria, por exemplo, um punhado de milho pisado com uma pedra ou um martelo: alguns pedaços maiores que outros e também parte em pó fino. Neste estado recebe o nome de farinha, embora em nada se assemelhe nem na brancura, nem na maciez à farinha do nosso trigo.

Os trabalhos da farinhada, embora diferentes dos trabalhos de nossa ceifa e debulha, me lembram muitos dos meus tempos de criança, que não são os mesmos atualmente.

Imagine um grupo de pessoas arrancando mandioca em uma praia, com um sol canicular: algo se assemelha a esses grupos de ceifadores que trabalham manualmente com nosso trigo em sua estação. Faltam aqui as canções, jotas aragonesas, que as concebo como hinos de ação de graças a Deus pelo trigo e o pão que ele nos deu, assim como era ação de graças aquele Painosso que o senhor, meu pai, nos ensinava a rezar e a cantar, quando tínhamos a sorte de encontrar entre o campo de trigo seco a Cruz fita com a palha do Domingo de Ramos que o senhor tinha colocado nos campos verdes de trigo que crescia. Eles não cantam aqui. Também não sei se eles rezam.

As canoas que ficam vazias e voltam cheias da praia nos lembram o nosso velho Monato, para quem não conhece, estou falando do burro que tínhamos em casa, e tantos outros Monatos carregando quatro cargas de preciosa colheita.

Diante da fermentação, do momento de serrar, prensar, torrar e armazenar a mandioca em sacos, como não me lembraria da colheita estendida, revirada, amassada, recolhida, ventilada (São Quiríco, envie-nos um arzinho da parva) e armazenada no celeiro nos sacos cheios de grãos de ouro.

Depois desse parêntese de saudade, voltemos ao nosso tema, mandioca.  Uma vez torrada, ela está pronta para ser consumida. Eles a mantêm em alqueires, em latas, em caixotes bem fechados, para que a umidade e os insetos não a estraguem. Haverá pouquíssimas famílias do Brasil em geral e dessa região em particular cujas mesas estão faltando, na hora da refeição, a farinha.

É servida em um recipiente especial por quem o tem, e aqueles que não tem a servem em um recipiente de algum produto que já consumiram, a colocam no centro da mesa. Cada um serve com a colher, mesmo que já tenha sido usada, sem qualquer preocupação com a higiene. É consumida misturada com os outros alimentos, fazendo com ela e com eles uma massa fina ou grossa, ao gosto de cada consumidor.

Quando vão trabalhar, levam um saco de farinha ou uma lata para carregar a farinha com o peixe, ou carne que possam ter; e na hora do almoço, eles misturam-no simplesmente com a mão.

Já vi pescadores e viajantes de canoa nos rios que só carregam farinha como único alimento. Ocasionalmente, eles pegam um punhado à mão, inserem o punho um pouco solto na água para absorvê-la, e assim comê-la.

A mandioca também é consumida frita e cozida; gosto muito dessas duas formas e muito pouco na forma de farinha; só quando não há mais nada, a consumo assim. Com ela eles também fazem bolos saborosos, rosquinhas, empanadas, frituras, etc.

Na Colômbia, onde, como se diz, chamam de yuca (mandioca), eu nunca comi ou a vi comê-la na forma de farinha, como aqui.

Da mesma forma que em nossa terra há pão branco, preto, caseiro, pão de padaria, e todo mundo tem suas preferências sobre um ou outro, então também aqui há farinha branca, d’água, seca e outras formas que, de acordo com seu gosto, cada um faz para consumo e venda. Como as diferenças entre um tipo e outro de pão não são perceptíveis, o mesmo acontece com os vários tipos de farinhas.

A forma de preparar a mandioca e fazer a farinha, descrita acima, é a forma manual e popular dos pobres; há, é claro, formas modernas, máquinas elétricas que tornam o processo mais rápido e em maior quantidade. Aqui, em Lábrea, eles montaram uma dessas fábricas no ano passado que eu até ouso dizer que não deu os resultados que eram esperados, por falta de organização da empresa, e por outros motivos.

Eu já falei em algum lugar as condições em que nossa estrada fica no inverno. Animados pela propaganda que os donos da fábrica faziam, muitos agricultores plantaram grandes quantidades de mandioca, mas, quando se tratava de arrancá-la, não havia como transportá-la para a fábrica. Muitos sofreram enormes danos porque não conseguiram processar tanta mandioca à mão.

A mandioca é muito rica em álcool. O governo nacional, nesta crise da gasolina em que estamos, fez através dos bancos grandes empréstimos para incentivar o cultivo de mandioca para a obtenção de álcool. Muito foi plantado, muito foi arrancado e no momento da verdade ninguém respondeu pela sua compra, com o consequente prejuízo aos plantadores. Aqui, nesse outro mundo que é a Amazônia, as coisas acontecem assim muitas vezes.

Meus queridos pais. Esta carta está chegando ao fim. Vocês poderiam imaginar como seria uma refeição sem pão em casa? Algo semelhante é aqui uma refeição sem farinha.  Pode haver muitas outras coisas, mas se o pão está faltando, se a farinha está faltando

Alguém que queria refletir uma situação de miséria ou pobreza, diria lá, na Espanha: não há nem pão para comer.  Aqui na região eu refletiria essa mesma situação, dizendo: eles nem farinha têm para comer. Intercedam para que nunca falte este nosso pão de cada dia.

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