Primeiras reuniões de Jesus Moraza para a criação das comunidades de base na zona rural da paróquia de Tapauá.

Resumo histórico, situação atual e depoimentos pessoais de religiosos que trabalharam lado a lado à comunidade e construíram parte de sua história pessoal ao serviço do povo de Tapauá, Amazonas, Brasil, Paróquia de Santa Rita de Cássia.

As constantes desobrigas não resolviam a vivência do catolicismo na zona rural. Uma visita anual para celebrar sacramentos não oferece um acompanhamento e crescimento na vida de fé nem um cuidado espiritual suficiente. Três fatos não permitem aumentar essas visitas: primeiro, a falta de sacerdotes, que por responsabilidades religiosas e civis no centro urbano não podiam faltar por longas temporadas; segundo, o escasso orçamento para uma ação pastoral que queima toneladas de combustível, unido à manutenção e cuidado dos barcos. Em terceiro lugar estão as condições climáticas, que reduzem a uns poucos meses a possibilidade efetiva destas visitas. Quando as águas estão altas muitas famílias se mudam para as zonas secas, vão ao “centro”; quando estão baixas, a navegação se torna difícil pela aparição de pedras, ao mesmo tempo em que aumentam as distancias, porque não se podem fazer furos entre os meandros.

O bispo Florentino Zabalza incluiu a adaptação deste sistema para toda a Prelazia como um plano de pastoral urgente. Se as comunidades católicas se reúnem semanalmente, falam de seus problemas, buscam soluções e celebram sua fé, não somente construiriam Igreja, mas uma comunidade civil consciente, que sabe de seus direitos e os defende de uma maneira conjunta. Os seringais do Purus deixaram de ser famílias isoladas que lutam por sobreviver e se converteram em comunidades solidárias, com capacidade de exigir das autoridades e de reagir diante das calamidades.

Em 1994 se contratou um casal para que fizesse um trabalho mais continuado de catequese nas comunidades rurais, entre Tapauá e Canutama. Também se conseguiu um maior esforço e consolidação da catequese bíblica e a formação religiosa. Também se começa a organizar, com recursos e pessoal, uma Pastoral da Terra que paliasse os problemas para a sobrevivência econômica destas pequenas comunidades. Concretizaram-se as denúncias contra os abusos na propriedade da terra, e as autoridades civis olharam de maneira mais consciente nestes habitantes dos municípios.

Também influiu a migração rural e o esvaziamento da população nos afluentes; bairros inteiros surgem em poucos anos sem uma mínima infraestrutura, e as famílias passavam de ter algo de cultivo nas praias, a caça ou a pesca, a não ter nenhuma ocupação. O positivo estava na inclusão das crianças no sistema educativo e a atenção sanitária.

Pelo contrário, também nestes anos ganham meios e recursos as empresas que, vindas de fora, depredavam abertamente os recursos naturais. A paróquia denunciou o desmatamento entre os rios Tapauá e Cunhuã, que prejudicava gravemente a vida dos povos indígenas, assim como a presença de peixeiros estranhos que esvaziavam os lagos e lagoas de todas e qualquer espécie.

Nestes primeiros anos a Prelazia cria duas equipes volantes, uma integralmente para os rios Tapauá e Cunhuã, com dois religiosos de Lábrea que também atendem e supervisionam a relação com a recém-descoberta tribo Zuruahã; e outra equipe se dedica somente ao Purus.

Em 2005 se funda a Cooperativa de Produtores Agrícolas de Tapauá, com ajuda estatal. Por um acordo, os agricultores vendem sua produção ao Governo, que o destina a instituições de beneficência. O Centro Esperança de Tapauá recebe desde então melancias, mangas, banana e um apreciado fruto local, a pupunha.

A zona rural é um mundo muito diferente do urbano, com sua própria vivência do tempo, do calendário; uma cultura isolada e economia de sobrevivência centrada no cultivo das praias e pesca nos rios, com uma priorização de necessidades muito distinta a do resto dos seres humanos. Algo disto se observa nesta desobriga contada por um dos religiosos, Nicolás Pérez-Aradros:

“Comecei a tomar os dados [para os batizados] às sete da manhã: Tinha que me armar de paciência. Duas vezes vieram duas mães a dar-me os dados de seus respectivos filhos. Uma delas ia batizar a quatro filhos, um por ano, pois fazia quatro anos que não vinha um sacerdote; a outra mulher ia batizar duas. Pois bem, tanto a uma com a outra resulta que o mesmo ano e em menos de seis meses haviam tido dois filhos em datas diferentes. Então tinha que corrigir o entorto e armar-me de paciência. Se era o pai que ia dar os dados, não sabia o nome completo de sua mulher; se vinha a mulher, vice-versa. Lembro que, ao perguntar a uma senhora quando nasceu seu filho, ela me disse: ‘um dia que chovia muito’; e outra: ’uma sexta feira’. Para rir, mas é verídico”.

Anos depois, outro missionário relatava sua particular experiência deste modo:

“O processo de inculturação passa por romper muitos esquemas, por admitir uma série de valores que, para nós, não são tanto, e para viver segundo uns princípios e interesses completamente diferentes. Em certa ocasião, num seringal de três casas, depois de cumprimentar a família, me pus a conversar com o dono da casa. Vendo que entravam e saiam várias crianças, perguntei quantos filho tinha. O pai ficou pensado e, um tanto perplexo, respondeu que não sabia. Chamou a sua mulher e lhe perguntou quantos filhos tinha; ela respondeu que sete, três homens e quatro mulheres. Então ele repetiu a resposta, todo feliz e satisfeito porque sua mulher sim sabia essa resposta difícil”.

Talvez uma das melhores descrições da atenção pastoral à população rural foi feita pela irmã Cleusa, Missionária Agostiniana Recoleta, mártir da causa indígena assassinada em 1985. Foi uma das pioneiras das equipes dedicadas aos ribeirinhos:

“Valeu a pena ver de perto, sentir e compartilhar a vida sofrida e cotidiana de nossos irmãos, através dos rios, praia, barrancos e centros distantes da sede do município. Quanta injustiça! Onde fica o respeito aos direitos humanos, rodeados de fome, enfermidades, analfabetismo, exploração dos mais necessitados, brancos ou índios…? E a evangelização? Certamente não basta o máximo que se pode fazer num só dia. Por isso a preocupação com os dirigentes atuantes em algumas comunidades. Pelo caminho meditamos sobre a viabilidade de pequenos projetos, provisórios e com voluntários, através do Purus. Pastoral das Curvas? Sonho? Fidelidade à missão e desejo de ser útil aos irmãos, pois é necessário que Ele reine”.

Desde os anos 80 todas as paróquias da Prelazia distribuem, no início de cada ano, em todas as comunidades rurais, um roteiro escrito com as celebrações, catequese, pequenas historias para reflexão de problemas e outros temas formativos. Serve para que os líderes saibam o que dizer e como atuar na comunidade.

Atualmente a paróquia conta com uma equipe especializada na atenção pastoral à zona rural, formada por um dos religiosos, uma missionária das Oblatas da Assunção, um comandante do barco e leigos comprometidos. A frequência tem aumentado notavelmente frente a antiga desobriga anual: há mais visitas de formação, outras com equipes itinerantes dedicados às crianças, à saúde ou a defesa da terra, celebrações das festas dos padroeiros.

O orçamento para tudo isto vem dos projetos financiados por entidades católicas como Misereor ou Adveniat, por ONGDs como as agustino-recoletas Haren Alde ou A Esperança ou programas públicos com o apoio da Comissão de Missões e Desenvolvimento Social da Província de São Nicolau de Tolentino. O esforço pastoral e econômico é grande, mas tem permitido uma presença muito mais constante e efetiva no interior.

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