Resumo histórico, situação atual e depoimentos pessoais de religiosos que trabalharam lado a lado à comunidade e construíram parte de sua história pessoal ao serviço do povo de Tapauá, Amazonas, Brasil, Paróquia de Santa Rita de Cássia.
Nasceu em Pamplona (Navarra, Espanha) em 1958. Desde 1981 é sacerdote e tem trabalhado como professor, em paróquias, formador de seminaristas e religiosos, Pastoral da Juventude e vocacional, secretário e prior provincial… No 2003 cumpre seu sonho de ser missionário em Tapauá, onde esteve dois anos e meio.
Desde criança havia querido ser missionário. Com os agostinianos recoletos fui me apaixonando das missões e fui alimentando esse sonho, que fui identificando com a Prelazia de Lábrea, porque fui conhecendo missionários de lá que nos contavam aventuras e falavam maravilhas de sua experiência, e porque alguns de meus amigos e companheiros mais próximos foram destinados lá. E por fim, após 22 anos como sacerdote, me enviaram lá. Voltava-se a produzir essa situação endêmica de escassa continuidade e excessivos câmbios de religiosos. Iria aprender, não a ensinar: aprender dos missionários, do povo, dos pobres, das crianças; disposto a me deixar evangelizar, a buscar a Deus no mundo mais pobre, mais jovem, desconhecido, misterioso e difícil.
Aprendi de meus companheiros a relacionar-me com o povo, a desenvolver-me na escola e na paróquia, a palpar a realidade e ver o que o povo esperava de nós e o que podíamos oferecer. Procurei aceitar tudo com realismo, sem decepções amargas nem mentiras bucólicas.
Cheguei num momento de euforia construtora. A comunidade anterior tinha feito grandes planos para deixar a paróquia dotada para o século XXI: Centro Esperança, capelas de Santo Agostinho e São José; ampliação das salas de catequeses e da igreja matriz, casa de retiros “Cassiciaco”.
O dia a dia começava às seis da manhã com missa, e a sete, as aulas de espanhol na escola, com as quais eu aprendi português. Ia em bicicleta ou andando para dar aula e regressava suado. O almoço era surpresa e logo me acostumei ao feijão de cada dia, ao arroz e ao peixe do Purus. Mesmo assim emagreci 16 quilos em seis meses. Às três da tarde, os dois primeiros meses, aula de português com Rayma, professora do lugar. Depois ia ao aeroporto a andar de bicicleta, porque a pista de 1,5 quilômetros era a única superfície onde pedalar sem cuidado das crianças, buracos, motos, bicicletas, cachorros…
Chamou-me a atenção a participação do povo: as crianças da infância missionária, verdadeiros protagonistas e missionários; os líderes das comunidades, como se envolviam nas festas; os conselhos paroquiais ao fim de mês, sem falhar, muito participativos e com muitas iniciativas; a novena do Natal; a Campanha da Fraternidade durante a Quaresma.
Outra descoberta impactante foi a organização política, muito parecida a um sistema feudal. O prefeito é como o padrinho que manda, faz e desfaz; contrata quem quer para qualquer trabalho… A Prefeitura é a única empresa, com centenas de empregados. É um voto cativo: se não votam ao prefeito, ficam sem emprego. Por isso a campanha eleitoral é tão suja. No ano 2005 houve uma fraude, irregularidades, compra de votos, ameaças, violência… O prefeito disse no radio que agora “ia a favorecer somente aos seus amigos, aos que lhe haviam votado”. Os meus ouvidos escutaram, entre alucinado e assustado, surpreendido e indignado.
A situação religiosa era surpreendente: dividida em dois grupos, católicos e evangélicos, metade e metade, com competência, às vezes desleal, entre uns e outros. Há muitíssima influencia, pressão e troca de igreja: o povo passa de uma a outra com suma facilidade, sem fidelidade nem compromisso. Alguns católicos se enamoram e o companheiro ou companheira os obriga ir a sua igreja evangélica para seguir juntos.
O Natal apenas se celebra, somente um pouco em noite de Natal e a novena Natal em família, que se celebra pelos bairros e é uma festas simples, mas bonita de união de laços entre os vizinhos e familiares. A Semana Santa também tem pouco realce. No início da quaresma os jovens católicos e alguns evangélicos se unem num retiro chamado Carnaval com Cristo, para fugir da sedução do carnaval civil, cuja magia chega até o mato. É notável a encenação da Paixão da Sexta Feria Santa, que representam com qualidade e entrega os jovens da Pastoral da Juventude.
Representação da páscoa juvenil na Sexta Feira Santa.
Quando se inaugurou o Centro Esperança veio o governador do Amazonas e os políticos locais e regionais quiseram obter receitas. Não quisemos envolver-nos. Fizemos a inauguração religiosa e somente assistimos ao início da comemoração com o governador, para dar-lhe as boas vindas.
As linhas pastorais estavam fixadas pela Prelazia: as Comunidades de Base eram a opção fundamental. Reúnem-se cada semana para a novena, a Eucaristia, organizar suas atividades e preparar e celebrar as festas de seu padroeiro, com a colaboração de outras comunidades. Havia um planejamento na linha da Teologia da Libertação e uma rejeição da espiritualidade carismática, mais sentimental, menos racional e com métodos parecidos aos evangélicos.
Queria-se incentivar a participação e responsabilidade pastoral dos leigos; especial cuidado de crianças e adolescentes; visitas aos enfermos, idosos, encarcerados (com o compromisso evangelizador da Legião de Maria); atenção progressiva à pastoral familiar, pelos perigos de infidelidade e de ruptura da convivência e câmbios de parceiros.
Uma novidade que se introduz foi a Eucaristia em cada comunidade da cidade durante a semana. Antes era na matriz às seis da manhã com pouquíssimas pessoas. Refletimos e ficamos de acordo que cada dia se celebraria numa comunidade diferente, e frequentemente participavam mais de 30 pessoas. Faltava muito por consolidar, mas a devoção e o apreço pela Eucaristia ia crescendo, num povo pouco acostumado e muito descuidado neste aspecto central e que, vivendo nos seringais, havia mantido a fé a base da devoção aos santos.
Os tapauaenses destacam pela sua familiaridade, hospitalidade, acolhida. Não custa fazer amigos. Abrem-te as portas, os braços e o coração. Fazem-se amigos e se deixam querer. Custa-lhes compreender a gente que chega de longe, com outra cultura, educação, costumes, língua. E a nós nos custa adaptar-nos, entende-los como são, com seus valores e suas limitações. Existe o perigo de querer “converte-los”, que aprendam minha forma de ver as coisas, quando nós vamos para aprender, e eles tem muito a dar, ensinar e transmitir.
É um povo muito jovem, quase adolescente, com vontade de crescer. É bonito, esperançados. Dar aulas na escola permite conhecer e ser conhecido pela maioria das crianças e suas famílias. O Centro Esperança oferece encontro e relação, apostolado, um areópago para a evangelização.
Uma de suas maiores conquistas é a educação: de ser um povo analfabeto temos passado a uns jovens cada vez mais e melhor formados, que em quando podem se vão a Manaus ou a Sul do de Brasil a buscar a vida. Antes era impossível e impensável: somente os filhos de comerciantes e políticos podiam ter esse luxo. Os programas de bolsas do governo de Lula da Silva melhoraram muito a situação das famílias mais pobres e necessitadas.
É uma igreja com poucas tradições, com muita música, desejos e criatividade, com vontade de ser protagonistas de seu futuro. Amam a Igreja, a tem como própria, colaboram, participam. O dizimo é uma das conquistas: compromisso de fé com Deus e com minha Igreja; e dão realmente o dez por cento de seu salário, às vezes minúsculo.
Fora do Amazonas, a missão tem gancho e atrativo. Às vezes podemos pecar de um desconhecimento que leva ao idealismo, aventuras heróicas, longe da vida rotineira e estressante de ocidente. Mas entre os freis se foi perdendo esse conceito e essa imagem. Também não se aprecia o mesmo entusiasmo missionário, cheio de vontade, generosidade e disponibilidade. Inclusive alguns religiosos veem com desconfiança e receio esse trabalho: “a verdadeira missão está na Europa. Os missionários vivem como reis, fazem o que lhes da vontade, coisas que em outros lugares não se pode”, costumam dizer alguns, não sei se com suficiente informação e objetividade.
Graças a Deus, sempre há religiosos que apoiam com sua oração e lembrança, seus detalhes (una chamada, uma carta, um correio eletrônico, uma coleta, um gesto). Sentíamos o apoio, tanto do Conselho Provincial, como dos ministérios; alguns bem pequenos como as paróquias de Barillas e Tulebras (Navarra), que colaboravam com quantias pequenas mas valiosas, como as da viúva do evangelho.
Por parte da família os maiores problemas eram a distancia e a falta de comunicação. Somente nos inícios do século XXI chegou o telefone e internet, mesmo que muito lenta e com muitas falhas. Puseram-nos em contacto com o mundo. A família sofria em silêncio essa ausência, mas sentíamos seu apoio, sua admiração, sua presença orante e carinho sustentador. É um dos esteios do missionário. E se notava a satisfação, orgulho e admiração que sentiam para nós.
Muitas pessoas, alguns conhecidos e muitos desconhecidos, apoiavam o trabalho. A monjas contemplativas Agostinianas Recoletas com sua oração contínua, generosa, silenciosa, fecunda, dolente e evangelizadora. Os ministérios sensibilizados, que semeiam espírito missionário entre os fieis. Os voluntários, que começavam a aproximar-se a esse mudo desconhecido e misterioso.
Em minha vida religiosa e pessoal, Tapauá tem significado um antes e um depois. Tinha necessidade dessa experiência, apesar de que tenha sido curta. Aprendi, chorei, sofri, curti, amadureci e cresci muito. Despojei-me de coisas e adquiri e aprendi outras novas. Minha fé cresceu entre os pobres. Que exemplos de entrega, de fidelidade a Deus, de fé autêntica, de sentido cristão da vida, de esperança, de amor, de generosidade! Ajudou-me a valorizar a comunidade, imprescindível para viver como recoleto; a querer e valorizar ao irmão, apesar de suas deficiências e falhas. A doar-me aos demais com mais generosidade. A vibrar com uma Igreja mais jovem, aprender tudo num contexto muito diferente ao de sempre. Foi duro e, por sua vez enriquecedor. Ter que aprender tudo isso supõe dificuldades, paciência, choques, mas é muito positivo. Abre a mente, alonga o horizonte, dilata o coração. Faz crescer e ver as coisas de uma outra forma, com novos olhos.
Sei que a vida não é fácil por lá. Há problemas, obstáculos políticos, sociais, geográficos, de trabalho, de cultura… Mas Tapauá e seu povo tem todo o futuro pela frente. Não podem presumir do passado, mas tem muita História por diante para construir. Tem o tesouro da juventude, que permite sonhar, que da forças e capacidade para resistir e superar as dificuldades. Animo-os a crescer e a consolidar-se como sociedade; a ir ganhando estabilidade e credibilidade social e política; a continuar combatendo erros, abusos, lacras, privilégios. Seguir adquirindo e reivindicando seus direitos, mais justiça, uma educação de maior qualidade, melhor saúde, uma mais justa distribuição das riquezas, maior liberdade, maior independência.
É um povo muito religioso. Em Cristo tem o Caminho, a Verdade e a Vida. Que não se deixem, que não permitam que ninguém os leve por outros caminhos que degradam a dignidade, que perturbam a paz, que prejudicam aos demais, que destroçam a família, que impedem o desenvolvimento. Que cresçam em tolerância, em apreço aos valores do outro, em respeito, em amor à verdade, em fazer juntos projetos a favor das crianças, dos jovens dos enfermos e dos mais pobres.
Parabenizo á paróquia de Tapauá por suas Bodas de Ouro! Desde aqui parece que não é nada; desde lá é toda uma vida, vivida muito apressa e intensamente. Convido-os a que valorizem seu passado: o esforço dos que lhes levaram a fé, lutaram por criar essa Igreja, deixaram sua vida servindo-os. Que desculpem as falhas e sejam generosos no perdão e apreço de quem temos passado por lá e fiquem com o bom (alguma coisa boa ficará) e esqueçam do mal.
Que aprendam deles a ser solidários, altruístas e caritativos, a não se fechar em seus próprios interesses mas buscar os interesses de Cristo e da comunidade toda. Que cresçam em maturidade e responsabilidade, em bom uso da liberdade, em profissionalismo, em formação. Que não percam seus valores, sua alegria, sua simplicidade, o sorriso invejável das crianças, sua hospitalidade, sua laboriosidade, sua capacidade de sacrifício e de sofrimento. Que aspirem a ser tudo o que Deus quer que sejam; tudo o que tem sonhado para eles.
ÍNDICE
- Introdução: Tapauá: 50 anos construindo Igreja e Sociedade
- 1. Um mundo de dimensões exorbitantes
- 2. Um hábitat difícil para o ser humano
- 3. Nasce a Paróquia de Santa Rita
- 4. E os Agostinianos Recoletos se fazem tapauaenses
- 5. Meio século construindo paróquia
- 6. A presença na zona rural
- 7. Grandes períodos de ausência ou solidão
- 8. As prioridades pastorais
- 9. A questão indígena
- 10. A questão educativa
- 11. A questão sanitária
- 12. Solidariedade exterior
- 13. Testemunho: Jesús Moraza
- 14. Testemunho: Enéas Berilli
- 15. Testemunho: Francisco Piérola
- 16. Testemunho: Cenobio Sierra
- 17. Testemunho: Nicolás Pérez-Aradros
- 18. Testemunho: Luis Busnadiego
- 19. Testemunho: Juan Cruz Vicário
- 20. Testemunho: Francisco Javier Jiménez García-Villoslada