Francisco Piérola, à esquerda, coordena atualmente um projeto de casas comunitárias em Guaraciaba do Norte, Ceará, Brasil. Entrega de uma das casas a uma família.

Resumo histórico, situação atual e depoimentos pessoais de religiosos que trabalharam lado a lado à comunidade e construíram parte de sua história pessoal ao serviço do povo de Tapauá, Amazonas, Brasil, Paróquia de Santa Rita de Cássia.

Nasceu em Mendaza (Navarra, Espanha) em 1939. É agostiniano recoleto desde 1959 e sacerdote desde 1963. Chegou ao Brasil após seis anos de trabalho pastoral em Chiclana de la Frontera (Cádiz, Espanha), e após uns meses em Tapauá, foi destinado a Lábrea onde ficou durante 11 anos.


Cheguei à missão do Amazonas brasileiro como voluntário, depois de seis anos em Chiclana de la Frontera (Cádiz, Espanha), onde vivi um tempo muito especial em todos os sentidos. Foi um grande choque chegar à missão, onde se me “caiu a alma aos pés” … Calor, idioma distinto, apatia do povo, nem televisão, nem moto, nem barco, nem bicicleta, com a forte impressão de estar perdendo o tempo sem saber o que fazer durante muitas horas… Foi a primeira escola que me ensinou a viver e ver até que ponto o ser humano pode se degradar.

As necessidades da paróquia eram imensas: não tinha nenhum sacerdote. O último tinha deixado o ministério. E na nossa chegada não tinha nenhum leigo comprometido. A princípio somente observava, calava e pensava que poderia fazer. A Prelazia estava sem bispo, com um vigário geral que “nada de nada”, sem um Plano Pastoral. Essa foi a verdadeira realidade que encontramos, nada de contar mentiras piedosas.

As expectativas se ampliaram, e muito, com uma liderança segura e respeitada por todos. Um Plano de Pastoral a seguir e, sobretudo, uma grande quantidade de comunidades de base e muitíssimos líderes. Deus recompense ao humilde bispo Florentino Zabalza, seu interesse e entrega até o final de suas forças!

Tapauá era uma ilustre desconhecida para mim. Antes de chegar não havia parado para imaginar. Ao chegar, vi que era uma difícil realidade; depois entendi que era muito pior ainda que naquela primeira impressão. E agora em 2015, dizem alguns que a conhecem, que está pior ainda.

Quando cheguei havia uns 700 habitantes na cidade e outros quinze mil no interior. Nada concreto nos mandaram fazer e tivemos que ir inventando “como ocupar o dia”. Surgiu uma ideia interessante: os três recoletos (Miguel Angel González, Jesus Moraza e eu) nos comprometemos a estudar algum tema e depois, uma vez por semana, informar a nossos companheiros sobre o que havíamos estudado cada um. Miguel Angel estudou os documentos da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil; Moraza se centrou nas enfermidades tropicais; e eu na Historia da Salvação.

Também começamos com as desobrigas. Miguel Angel passou quinze dias no rio; Moraza teve que ir a Lábrea; eu fiquei sozinho, e para cúmulo dos males, com malária, com uma febre de cavalo, sem um medicamento… Quando menos esperava, pelas duas da manhã, escuto uns batidas na parede da casa… era Miguel Angel! Voltava dois dias antes do previsto, pois o lugar aonde ia estava coberto por dez metros de água; as pessoas viviam lá somente durante o verão.

Esta pequena anedota condiciona ainda hoje a realidade de Tapauá. Zequinha era um pequeno comerciante da Foz de Tapauá; outro comerciante queria fazer-se com seus fregueses e não teve outra ideia que matá-lo, Como? Convenceu a uns índios que morriam de sarampo que o espírito mau de Zequinha lhes mandava maus espíritos. E que temos que fazer?… Matar a Zequinha e a toda a família e assim acabar com os maus espíritos.

Os índios, de noite, invadiram a casa. Ele conseguiu fugir, mas não a mulher e os filhos. Não vou contar o medo que produz aquela historia, nem como a polícia prendeu os índios para descobrir quem era o responsável deste massacre. A polícia reconheceu que os índios tinham sido enganados, obrigou-os a viver na cidade de Tapauá e um dia apareceram num barco carregado de armas.

O povo da cidade, também armado, os obrigou a ir embora e foram a viver atrás da cidade, no igarapé São João. Pânico, dia e noite vigiando, a parte detrás da cidade, mas nada aconteceu. Os índios continuam vivendo lá pacificamente.

Outra estória é a matança dos Jumas. Uns brancos de Tapauá, para ficar com suas terras, exterminaram toda a tribo, ficando um resto de uns seis, que o agostiniano recoleto José Luis Villanueva e algum outro mais, visitaram.

Para ser breve e não enganarmos, na cidade nada havia organizado. Um prefeito que fazia o que queria. Ficava com o dinheiro, e o povo calado… Eram anos que, quem se queixava era considerado comunista e cuidado com a Teologia da Libertação! Tudo se fazia em nome da segurança nacional… e a insegurança dos nacionais.

Mas a missão do Amazonas me tem feito conhecer e seguir a Cristo, conhecer a realidade do povo mais simples. Estas duas coisas, acompanhadas de muitas leituras tem dado sentido a minha vida, um sentir-me bem e ao mesmo tempo “indignado” com a realidade.

Finalmente, quero contar uma historia que para a missão de Lábrea julguei ter um antes e um depois: uma planta que um dia foi plantada e seus frutos continuam até hoje. Em torno de 1977 veio a visitar-nos Rômulo Balestrero, vigário geral da Arquidiocese de Vitória (Espírito Santo, Brasil), igreja irmã da Prelazia. Era grande protetor da missão, das Missionárias Agostinianas Recoletas e da Igreja. Eu fiquei impressionado: um vigário geral! Qual foi minha estranheza quando chegou um sacerdote pequeno de estatura, magro e discreto, humilde, que ficou conosco uns vinte dias.

Um dia (feliz dia!) pedi que me acompanhasse a uma comunidade rural. No caminho disse-lhe: “Vamos fazer uma reunião. Aqui o povo nunca se reúne se o sacerdote não está, e isso acontece uma vez por ano. Em Vitória o povo tem muita cultura, aqui são analfabetos; em Vitória tem muitas comunidades que todas as semanas se reúnem, mas aqui é impossível pela sua ignorância. Quero que me diga a verdade sobre o que vai ver, o bom e o mal que exista”.

Quando chegamos, subimos o barranco até a comunidade. Eu abri a porta da capela, toquei o sino, dei umas palmadas para entrar, eu me coloquei na frente e o povo ficou sentado, eu fiz o sinal da cruz, eu dirigi a oração, eu dei uns avisos, eu fechei a igreja e voltamos. De novo, na canoa me dirigi ao Padre Rômulo:

  • Que lhe pareceu a reunião?
  • Francisco, quer que lhe diga o que me pareceu? Olha, você abriu a porta, tocou o sino, leu o Evangelho, etc. Isso é a falha. Eles não sabem fazer nada?
  • Aqui o povo é analfabeto, muito vergonhoso, tem medo de tudo; esses inconvenientes não os tem em Vitória.
  • Mas Francisco, alguma coisa devem saber fazer. Não sabem rezar o terço?
  • Tanto como um terço sabem, mas rezam em suas casas.
  • Então que rezem um terço, e anima-os a fazer todas as semanas em comunidade, eles sozinhos, venha ou não venha o frei. Somente isso podem fazer? Estão fazendo o cem por cento!

Eu escutei tudo isto como algo tão simples, mas me dei por satisfeito. Rômulo voltou para Vitória. Quando chegou o dia de voltar à comunidade a que tinha ido com ele, pedi luz ao Espírito Santo. Cheguei, toquei o sino e o povo foi chegando em suas canoas e fomos entrando… e eu me coloquei entre eles e lhes disse que tinham que fazer a reunião; eu estaria rezando com eles.

  • Padre Francisco, nós não sabemos fazer nada, faça o senhor como sempre.
  • Não sabem fazer nada? Rezar o terço sim que sabem.
  • Bom, isso sim sabemos.
  • Pois então alguém comece e dirija o terço.

Demorou, mas dona Maria se colocou diante de todos para rezá-lo.

  • Padre Francisco, eu vou rezar, mas como em minha casa: primeiro entoou um bendito, outro no meio e outro no final.
  • Muito bem, dona Maria!

Dona Maria entoou o bendito, rezou o terço…

  • Viram como sabiam fazer? Então, o próximo dia poderão fazer sozinhos?

E assim foi. A partir desse dia se reuniram todas as semanas sem o frei. Fizemos a mesma proposta em todas as comunidades. Aos dois meses já eram bastantes as que se reuniram sozinhas uma vez por semana. O tempo foi passando e o bispo liberou Jesus Moraza da paróquia para, viver no barco, visitar todas as comunidades e explicar o modo de se reunir sem sacerdote. Depois de um tempo descobriu que todas as comunidades estavam reunindo-se.

Com o tempo se fez um Roteiro com o Evangelho de cada domingo, preces, algum canto, para as comunidades mais avançadas. Logo começou a reunir os dirigentes de cada comunidade, para receber formação durante cinco dias. Sem dar-nos conta, a Prelazia tinha ganhado outro rosto; tínhamos muita gente fazendo algo como Igreja. Fruto desta forma de trabalhar começaram os sindicatos rurais, aumentou o empenho na defesa dos índios e outras coisas se não haveríamos aceitado se nossa mentalidade tivesse sido a anterior daquele “dia feliz”.

E passaram muitos anos. Coincidi com certo bispo num retiro espiritual e começou a me contar como quando era sacerdote esteve em Lábrea numa Assembleia dos Missionários, e lá descobriu o que Rômulo nos fez descobrir e que havia revolucionado a Prelazia. “Eu voltei a minha paróquia e a partir desse momento tudo mudou, e te posso dizer que meu trabalho pastoral como sacerdote e bispo não tem sido outra coisa a não ser desenvolver aquela intuição. Por isso te digo que muito obrigado, pois entre vocês eu vi aquela luz”, me disse.

Que o Espírito Santo seja nosso guia!

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