Resumo histórico, situação atual e depoimentos pessoais de religiosos que trabalharam lado a lado à comunidade e construíram parte de sua história pessoal ao serviço do povo de Tapauá, Amazonas, Brasil, Paróquia de Santa Rita de Cássia.
Enéas Berilli nasceu em Muquí (Espírito Santo, Brasil) em 1936, é agostiniano recoleto e foi ordenado sacerdote em 1962. Chegou à missão de Lábrea ao ano seguinte; primeiro serviu em Canutama e depois em Tapauá entre abril de 1966 e dezembro de 1969, para depois continuar servindo ao povo de Deus nas zonas sul e sudeste de Brasil. Foi prior provincial de Província de Santa Rita durante doze anos.
Fomos destinados a Lábrea por uma decisão do primeiro Capítulo da Província de Santa Rita em 1963. A ata IV dizia: “Que o provincialato mande imediatamente à Prelazia de Lábrea suficientes missionários, bem preparados e animados de verdadeiro espírito apostólico”. A razão mais urgente era a falta de missionários. Canutama e Tapauá tinham tão somente um missionário em cada uma. O prior provincial, José Gonçalves, solicitou nossa presença nas missões.
Aceitamos com muita alegria, dispostos a ir a qualquer parte. Pela urgência da situação, partimos imediatamente e chegamos a Lábrea dia 6 de outubro de 1963, eu com apenas um ano de sacerdote e sete de vida religiosa. Em Lábrea, após um tempo de adaptação ao clima e aos mosquitos, nos deram o primeiro destino: eu iria para Canutama.
Em dezembro de 1963, o agostiniano recoleto Cassiano Amorim e eu fizemos a desobriga entre Lábrea e Canutama, onde fiquei, pois Isidoro Irigoyen estava de férias na Espanha. Passei meu primeiro Natal nas missões, com Augusto em Canutama, e depois ele continuou para Tapauá em janeiro, onde seria o companheiro de Victorio Henrique Cestaro.
Daquelas terras somente tínhamos alguma notícia quando vinha algum missionário para participar das reuniões ou fazer campanhas de sensibilização. Contavam os esforços e aventuras de suas desobrigas e viagens pelos rios, as enormes distâncias, as dificuldades que passavam. Mas por muito que alguém conte sua experiência no Amazonas, quando se chega lá é algo impressionante, desconhecido: a selva e os rios com sua largura, a diferença entre o tempo seco, com o Purus com seis metros de profundidade, ou em tempo de chuvas, que sobe a 23.
Nossa expectativa era de muito trabalho, de muitas carências em todos os aspectos: casa, distâncias, enfermidades, falta de escolas e médicos, hospitais deixados na mão de Deus… Não era para desanimar, ao contrário, a vontade dos missionários era de trabalhar pelo Reino de Deus com grande prazer, sabendo que levávamos esperança para aquele povo.
Em Canutama vivi o processo de construção da Igreja e da casa paroquial. Em Tapauá não havia nem casa nem igreja. Desde Canutama podia conhecer todos os acontecimentos de Tapauá pelas visitas de Victorio. Em março chega à Prelazia o religioso agostiniano recoleto Francisco Eugênio, que é enviado a Canutama para que eu fosse a Tapauá, aonde cheguei no dia 3 de abril de 1966.
O objetivo era dar continuidade às obras da casa, ao que dei prioridade durante cinco meses trabalhando todos os dias, até noite adentro. Em julho pudemos inaugurar a casa nova, circunstância em que estiveram, por primeira vez em Tapauá, as Missionárias Agostinianas Recoletas, entre elas a venerável Cleusa, que passou uma semana de convivência amiga com os Apurinã.
A casa tinha a parte inferior de tijolo com espaços comuns. A parte superior era de madeira, com um espaço coberto ao redor, para evitar o sol nas paredes e suavizar o clima. Naquele tempo estava dividida em três quartos, uma sala de estar, uma sala de entrada e uma sala para guardar roupas. Uma escada desce da sala principal até a cozinha, refeitório, banheiros, despensa e pátio frente a uma grande área de selva virgem. O telhado era de amianto pintado, dado que era necessário impermeabilizar o edifício numa zona de chuvas fortes e constantes.
Quando acabamos a construção da residência decidimos que era hora de começar a igreja matriz definitiva. Com a estrutura metálica que havia enviado o bispo José, se havia tentado a construção e já havia uma escavação frente à capela antiga. Mas uma coluna de ferro daquela estrutura tinha sofrido uma curvatura enorme por um acidente, e em Tapauá era impossível ajeitá-la. Por isso decidimos não usá-la.
Após vendê-la em Manaus, compramos tijolos de quatro buracos, cimento, ferro, tábuas e telhas. Mostramos o desenho ao engenheiro da residência de Lábrea e lhe dissemos que nós dirigiríamos a obra, porque em Tapauá ninguém sabia fazer nada de pedreiro. Deu-nos conselhos sobre os alicerces, sobre como umedecer os tijolos antes de colocá-los e recobri-los.
Buscamos areia e pedras no rio antes que as águas subissem e impedissem de fazer essa tarefa durante os seis meses seguintes.O padrinho da paróquia, Vitorino Marques, colaborou com o envio gratuito desde Manaus, de todos os materiais e pagou a alfândega que havia na época.
Toda a população, e especialmente as crianças, colaboraram no descarregamento. Os pequenos, como formiginhas, conseguiram fazer num dia, o trabalho que demoraríamos pelos menos uma semana, diziam muitos. Foi um dia memorável e de grande alegria para todos, e houve até foguetes.
Entramos de cheio e iniciamos as obras. Tínhamos dois ajudantes, um pai e um filho que estavam no xadrez e que conseguimos liberar fazendo-nos responsáveis deles diante do prefeito e da polícia. Começamos transladando os objetos do culto até a Escola Dom José Álvarez, que durante as obras funcionou como templo e escola, e desmontamos a capela velha para construir nesse solar a nova igreja.
Victório e eu nos alternávamos entre as obras e os demais trabalhos da missão. A princípio tínhamos delineado uma capela de 10 x 20 metros; mas a pedido do bispo acrescentamos três metros mais de fundo para a sacristia, e assim se aproveitou a altura sobre a ladeira para fazer debaixo uma grande sala de catequese.
Quando chegou o momento de fazer o telhado, necessitávamos grande quantidade de madeira e contratamos um grupo de homens, que junto comigo, permaneceram quase um mês na selva derrubando madeira. Aproveitamos uma árvore que já estava no chão e cortamos outra; desta forma conseguimos três peças de 11 metros de altura e outra de oito metros. Serramos tudo a mão no lugar e preparamos par ser transportado de barco até o pé de obra.
As janelas basculantes, o ferro e o vidro foram compradas em Manaus e se enviaram até Lábrea. Com uma máquina de soldar da Prelazia, cortei e soldei cada janela, e logo as enviei até Tapauá. A obra ficou terminada praticamente num ano e meio.
Nesse tempo também instalamos a energia elétrica. No início havíamos comprado um gerador de 6,5 KVA com capacidade para a Igreja, Escola, Praça, Prefeitura, Casa dos freis e a casa de um comerciante que ajudava com os gastos de combustível. Quando fomos a Manaus, para registrar a escola Dom José Alvarez na Secretaria de Educação, e pedir material escolar, também nos dirigimos à companhia de eletricidade para pedir fios, isolante, postes e lâmpadas, com o compromisso de iluminar a rua principal. A Companhia nos deu os materiais.
Quando cheguei à Prelazia para mim tudo era novidade. Estava disposto a tudo, a enfrentar desde a juventude todos os desafios que se aparecessem por diante. Tapauá era uma missão nova, com tudo por fazer, com mais ou menos 800 habitantes e 150 crianças na escola. Quando terminavam o Ensino Fundamental, não tinham nada que fazer. A malária era frequente, quase uma epidemia, a “febre negra” dizimava as famílias e assustava a todos.
Uma paróquia que se inicia não tem quase nada, falta tudo. A atenção era sacramental e nas desobrigas; dávamos uma pequena catequese ao cair da tarde, com as confissões e o rosário, dado que a liturgia não permitia a missa noturna.
Quanto à Educação, em 1966 começamos um curso especial de aprofundamento nas principais matérias: português, matemática, historia, geografia, ciências, moral, educação cívica e religião. Acho que foi muito proveitoso para o aprendizado das crianças na escola.
Em 1967, aproveitando que duas jovens alunas tiveram notas muito boas no curso anterior, e ante a falta de professores qualificados, tomei a iniciativa de alfabetizar um grupo de umas quarenta crianças, para que, posteriormente as duas jovens continuassem ensinando-as. Para nossa surpresa aos seis meses as crianças já sabiam ler e escrever. Em 1968 incluímos um grupo de apurinãs interessados em aprender português. Mesmo que alguns tenham desistido, outros concluíram com proveito. A educação, como prioridade, promoveu a cidadania entre os mais jovens.
Era o tempo dos desfiles escolares, com uniformes doados pela paróquia, e que era uma das principais atrações para o povo. Quando chegou Agostinho Belmonte, o primeiro provincial que fez a visita à comunidade, foi recebido por um destes desfiles, que incluiu discursos poesias e musicas. Encantou a todos. A escola Dom José Alvarez mostrava que tinha vida.
Os animados grupos de jovens tinham seu ponto forte na catequese; a frequente participação na Eucaristia e o Campeonato de Futebol, a atração dos domingos. Pela manhã rezávamos o ofício e celebrávamos a missa, e à noite rezávamos o terço com o povo.
Quando cheguei não havia nem médico nem hospital. A malária era uma epidemia: cheguei em abril e em julho já passei a primeira malária. A Febre Negra, o mal de Lábrea, começava com uma pequena febre no primeiro dia, mas no terceiro, a morte era segura. Esta enfermidade trouxe ao doutor Jorge Boschell, colombiano, descobridor da febre amarela silvestre. Residiu várias vezes na casa dos freis, enquanto investigava. A princípio ele mesmo acreditava que era causada por uns fungos da farinha de mandioca, que é o principal alimento do amazonense.
As festividades mais importantes naquele tempo era o Dia da Pátria, 7 de setembro, com desfiles das escolas com seus uniformes e tambores; e o novenário a Santa Rita de Cássia. Na Semana Santa passávamos filmes sobre a Paixão e se celebrava a via sacra. No Natal se fazia um teatro do presépio e um concurso de cantos natalinos tradicionais do nordeste, as “pastorinhas”, que faziam com criatividades, com máscara e cânticos próprios.
Recebemos poucas visitas, mas quando estava em Tapauá veio o bispo José Alvarez. Passou uns dias conosco; visitou aos apurinãs com os quais assistiu a uma festa com danças e cantos. Foi quase uma despedida, porque pouco depois renunciou devido à sua saúde. O provincial Agostinho Belmonte visitou todas as casas da Prelazia durante seu mandato. Também acolhemos por duas vezes os médicos, professores, assistentes sociais, técnicos de laboratório e engenheiros vindos do Projeto Rondon, doze pessoas que conviveram conosco um mês.
Durante os seis anos que passei na Prelazia, visitei duas vezes a minha família, que vivia preocupada por mim. Minha irmã, médico, trabalhou vários anos no Instituto de Estudos da Amazônia em Manaus. Pude ter maior contacto com ela por meio de cartas.
Na família era acolhido com carinho e muita curiosidade para ouvir coisas do Amazonas. Preparei fotografias para mostrar a grandiosidade dos rios, seu aspecto em época de chuvas e em época de seca; a extração do látex e a castanha; as viagens pelos igarapés; as consequências da lepra, com muitas pessoas mutiladas; as plantações de mandioca, milho, feijão, melancias, melão; o processo de preparação das praias para plantar. Esperavam ao missionário com carinho. Em nossos ministérios fazia campanha e o povo colaborava com muita alegria.
Para mim foi uma surpresa conhecer o Amazonas: um povo pobre, mas solidário, humilde, simples, alegre inclusive vivendo em barracos flutuantes ou de telhado de folhas de palmeira, sem divisão de quartos, sem móveis, nem sequer uma cadeira, sempre dormindo em rede. Mas são incrivelmente acolhedores, e mais com o missionário. O que mais me chamava a atenção era a solidariedade, tanto no trabalho, como nos sofrimentos e dores; se percebia uma conformidade ante todas as dificuldades pelas quais passavam, e são pessoas realmente de admirar.
A chegada da televisão começou a mudar um pouco as coisas. Antes estavam completamente isolados, fora de todo contexto do mundo circundante, mas a partir desse feito puderam ver e conhecer outras realidades materiais, humanas, culturais ou religiosas.
Antes de ir ao Amazonas tinha passado por uma paróquia e por um colégio. Na paróquia aprendi a ação pastoral, a importância da evangelização e da liturgia, festas e sacramentos. No colégio como organizar um trabalho em equipe, distribuir matérias, ensinar disciplina, prática do esporte e organização da secretaria, documentação e ensino. Tudo foi muito útil quando cheguei ao Amazonas, com a educação como trabalho mais urgente, e a evangelização como tarefa a começar de zero.
Já em Canutama, o prefeito me nomeou diretor de ensino. Assumi o trabalho com tranquilidade e consegui quatro professoras em Manaus. Também fiz as gestões para a visita da Secretaria de Educação do Estado de Amazonas à região. Isto me permitiu depois organizar e conseguir ajudas educativas em Tapauá, assim como registrar a escola Dom José Álvarez, o contrato dos missionários como professores, a chegada de material escolar…
Não somente ajudei, também aprendi muito, como a solidariedade, a simplicidade e, especialmente, a paciência que tive que praticar. Trata-se de um povo sofredor e que por sua vez confia na ação de Deus, em sua providencia e bondade. Nada nos impedia o trabalho, nem sequer o risco de enfermidade e acidentes onde qualquer recurso médico só se podia alcançar depois de cinco longos dias de viagem pelo Purus.
Nunca esquecerei esses anos em Tapauá. Agradeço muito a convivência com aquele povo, o carinho e respeito pelos missionários que ali plantaram e planta hoje sementes de união, cidadania, amor, solidariedade, humildade, desde o reconhecimento da importância de Deus na vida. Peço-lhes que continuem trabalhando para melhor cada dia, crescer em cada passo, sempre em família.
Mando uma saudação especial a nossos irmãos Apurinã, que me deram o nome de Chiricari: Não esqueçam de frei Enéas, não esqueçam a Chiricari. Outra palavra de carinho para as Oblatas pelo seu trabalho. E felicidade ao povo de Tapauá, por sua fé e devoção a Santa Rita de Cássia. Que o Senhor abençoe a todos.
PÁGINA SEGUINTE: 15. Testemunho: Francisco Piérola
ÍNDICE
- Introdução: Tapauá: 50 anos construindo Igreja e Sociedade
- 1. Um mundo de dimensões exorbitantes
- 2. Um hábitat difícil para o ser humano
- 3. Nasce a Paróquia de Santa Rita
- 4. E os Agostinianos Recoletos se fazem tapauaenses
- 5. Meio século construindo paróquia
- 6. A presença na zona rural
- 7. Grandes períodos de ausência ou solidão
- 8. As prioridades pastorais
- 9. A questão indígena
- 10. A questão educativa
- 11. A questão sanitária
- 12. Solidariedade exterior
- 13. Testemunho: Jesús Moraza
- 14. Testemunho: Enéas Berilli
- 15. Testemunho: Francisco Piérola
- 16. Testemunho: Cenobio Sierra
- 17. Testemunho: Nicolás Pérez-Aradros
- 18. Testemunho: Luis Busnadiego
- 19. Testemunho: Juan Cruz Vicário
- 20. Testemunho: Francisco Javier Jiménez García-Villoslada