Explicação completa do sepulcro que contém os restos mortais de Santo Agostinho de Hipona (354-430) na basílica de Pavia, Itália.
Agostinho dá aulas em Roma e Milão
“Comecei, portanto, a reunir em minha casa [em Roma] um pequeno grupo de estudantes…” (Conf. V 12, 22. Seguimos a tradução em espanhol de José Cosgaya, in SAN AGUSTÍN, Confesiones, Madrid, BAC minor 70, 1988, 2ª ed., pp. 157–158)
“Por isso, quando da cidade de Milão escreveram ao prefeito de Roma pedindo para lá um professor de retórica, com viagem paga pelo Estado, eu mesmo solicitei esse emprego por intermédio dos mesmos amigos, ébrios com as vaidades dos maniqueus, dos quais ia-me separar. Tanto eles como eu, porém, o ignorávamos. Símaco, então prefeito da cidade, propôs-me o tema de um discurso, e sendo eu aprovado, mandou-me para Milão.” (Conf. V, 13, 23).
Este painel inclui a atividade de ensino do Santo nas cidades de Roma e Milão. Agostinho aparece cercado por discípulos, que ouvem atentamente. Ele é identificado com a auréola serrilhada, que o acompanhará até a cena do batismo (infra, n.º 5).
À direita do espectador ergue-se a cidade de Roma, como fica claro a partir de seu emblema: SPQR (Senatus PopulusQue Romanus). A outra cidade é Milão.
Entre o auditório de Ambrósio
“Chegado a Milão, visitei o bispo Ambrósio, famoso na terra por suas qualidades, piedoso servo teu, cuja eloquência distribuía zelosamente entre teu povo a flor de teu trigo, a alegria do azeite e a sóbria embriaguez de teu vinho. A ele era eu conduzido por ti sem o saber, a fim de que ele me conduzisse a ti conscientemente…” (Conf. V, 13, 23).
“[Mônica] Iá com maior solicitude à igreja para ficar suspensa dos lábios de Ambrósio, como da fonte de água viva que jorra para a vida eterna. Minha mãe amava este varão como a um anjo de Deus…” (Conf. VI, 1, 1).
O jovem Agostinho escuta Santo Ambrósio, bispo de Milão, que está pregando, com um gesto eloquente; observe a auréola de um e do outro. Ele acompanha, certamente, seu amigo Alípio, que seria o personagem que se senta à sua direita. Muito possivelmente, Santa Mônica também está representada, na mulher que cobre a cabeça ao pé do púlpito.
Visita a Simpliciano. Cena do “tolle, lege”
“Então me inspiraste a ideia — que me pareceu excelente — de me dirigir a Simpliciano, que eu tinha como um de teus bons servidores, em quem brilhava tua graça. Sobre ele ouvira também que desde sua juventude te consagrava devotamente sua vida, e como já encanecia… Fui ter pois com Simpliciano, pai espiritual do então bispo Ambrósio, que o amava verdadeiramente como pai. Contei-lhe os labirintos do meu erro… mal teu servo Simpliciano me contou a conversão de Vitorino, ardi no desejo de imitá-lo; aliás, era essa a finalidade da narração de Simpliciano” (Conf., VIII, 1, 1 (p. 236); 2, 3 (p. 238);5, 10 (p. 246). Dei X, 29, 2 PL 41, 303–304).
“Mas eis que, de repente, ouço da casa vizinha uma voz, de menino ou menina, não sei, que cantava e repetia muitas vezes: “Toma e lê, toma e lê”. E logo, mudando de semblante, comecei a buscar, com toda a atenção em minhas lembranças, se porventura esta cantiga fazia parte de um jogo que as crianças costumassem cantarolar; mas não me lembrava de tê-la ouvido antes. Reprimindo o ímpeto das lágrimas, levantei-me. Uma só interpretação me ocorreu: a vontade divina mandava-me abrir o livro e ler o primeiro capítulo que encontrasse. Havia ouvido dizer que Antão, assistindo por acaso a uma leitura do Evangelho, tomara para si esta advertência: “Vai, vende tudo o que tens, dá-lo aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me” — e que esse oráculo decidira imediatamente sua conversão. Depressa voltei para o lugar onde Alípio estava sentado, e onde eu deixara o livro do Apóstolo ao me levantar. Peguei-o, abri-o, e li em silêncio o primeiro capítulo que me caiu sob os olhos: ‘Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e rixas; mas revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis de satisfazer os desejos da carne’ (Rom 13, 13–14). Não quis ler mais, nem era necessário. Quando cheguei ao fim da frase, uma espécie de luz de certeza se insinuou em meu coração, dissipando todas as trevas de dúvida.” (Conf. VIII, 12, 29).
Duas cenas são retratadas aqui. À esquerda, Agostinho encontra Simpliciano, que aparece com uma auréola de santidade e vestido como um monge dentro de uma ermida. É este ilustre sacerdote milanês que, nas Confissões, informa Agostinho da evolução espiritual de Mário Victorino e, com o seu exemplo, o impele à conversão.
A conversão, precisamente, é o que é encenado à direita. Um Agostinho com um rosto adequado para a circunstância, sentado à sombra de uma árvore, ouve o convite “Toma e lê!”, e se debruça sobre o livro das cartas de São Paulo. Vale ressaltar que, no relato das Confissões, Agostinho ouve a canção — aparentemente casual— de algumas crianças; aqui, o artista sublinha a origem divina da sugestão dando entrada a um anjo que traz o livro.
Batismo e vestimenta de hábito
“Alípio também quis renascer em ti comigo, associamo-lo [Adeodato] a nós como irmão na graça, para educá-lo em tua lei. Fomos batizados, e os remorsos de nossa vida passada se afastaram de nós.” (Conf. IX, 6, 14).
As duas cenas se fundem em uma só: o batismo e a vestimenta monástica do Santo. A realização propriamente do batismo não aparece aqui explicitamente, o que certamente enganou Sacchi, que vê nesta cena Agostinho recebendo a vestimenta própria do catecúmeno. É por isso que ele identifica como ara o que é uma pia batismal e deixa Adeodato sem ser identificado. Embora exista a pia batismal e, em torno dela, os personagens mencionados nas Confissões: Ambrósio, Agostinho, o jovem Adeodato e Alípio. Pela primeira vez, a auréola do Santo está representada completa: Agostinho aqui passou a ser cristão.
Curiosamente, em vez das águas batismais, Agostinho recebe das mãos de Ambrósio o hábito monástico, com seu capuz. Também mostra na cabeça a típica tonsura dos monges. Por mais que pareça aos olhos da crítica um anacronismo flagrante, essa cena é baseada em lendas que na Idade Média tinham bastante peso; os Sermões ad fratres in eremo, por exemplo, durante séculos atribuídos a Santo Agostinho e, portanto, extremamente influentes, colocaram na boca do Santo a memória desta cena: “Quando, aos 30 anos, o Santo Padre Ambrósio me regenerou em Cristo, ele disse, respondendo a uma pergunta minha: —’Pensai, irmãos, quão repreensível seria se, sob o hábito monástico que vocês usam, escondêsseis o orgulho ou a luxúria’”: Sermão 27 PL 40, 1282d; e expressa, pelo menos, a continuidade entre o batismo e a consagração a Deus na vida religiosa.
À margem, estão as figuras de São Simpliciano, em pé, e Santa Mônica, ajoelhada, ambas aureoladas. Sua presença implica que os dois participaram do processo cuja culminação captura a cena.
Funeral de Santa Mônica
“Quando o corpo foi levado à sepultura, fui e voltei sem derramar uma lágrima. Nem mesmo nas orações que te fizemos, quando oferecemos o sacrifício de nossa redenção por intenção da morta, cujo cadáver jazia junto ao sepulcro antes de ser inumado, como ali é costume, nem mesmo nessas orações, chorei…” (Conf., IX, 12, 31–32).
O corpo aureolado de Mônica é levado nos ombros dos religiosos até a igreja de Santa Áurea, em Óstia, onde descansaria por séculos. Agostinho, também vestido de monge, acompanha os restos mortais de sua mãe. Com ele estão três leigos, dos quais dois podem ser Adeodato e Evódio, mencionados nas Confissões (Conf., IX, 12, 29–31).
Agostinho dá a regra aos seus monges
“Ordenado sacerdote, fundou então um mosteiro na igreja e começou a viver com os servos de Deus de acordo com a maneira e a regra estabelecida pelos apóstolos (Vita V PL 32, 37).”
Estritamente falando, essa cena não aparece nos relatos biográficos de Agostinho nem nas lendas a seu respeito. Responde, antes, a um esquema iconográfico comum entre os fundadores. O Santo está cercado por seus filhos, a quem ele dá a Regra, escrita em um pergaminho. Ele está vestido como um monge, assim como aqueles que o recebem; alguns deles carregam um bastão, um símbolo distintivo dos eremitas. Muitos dos religiosos estão de joelhos e em atitude de oração; recebem a Regra com veneração. Santo Agostinho é retratado como o fundador dos eremitas agostinianos.
Ele refuta Fortunato, que sai de Hipona chorando, e batiza os maniqueístas convertidos
O episódio é relatado por Possídio, biógrafo de Agostinho, embora sem deixar detalhes como o choro de Fortunato ou o batismo de seus seguidores (Vita, VI PL 32, 38). Sacchi também não conseguiu identificar este episódio, nem integrar as três cenas. Para ele, Agostinho é retratado, por um lado, em uma de suas muitas disputas; por outro lado, o Santo administra o batismo a um grupo de jovens; e, em terceiro lugar, há um personagem que cobre o rosto para não ver o batismo (cf. Agostino e la sua arca, p. 33; ele endossa a opinião de Sacchi sobre as pp. 74 –75).
No relevo, três cenas são claramente distinguidas. À esquerda, diante de uma audiência de religiosos, Agostinho e o sacerdote maniqueísta Fortunato mantêm uma disputa pública sobre questões doutrinárias. Fortunato é refutado, até que ele é forçado a abandonar Hipona muito avergonhado (cena superior à direita). Como resultado, muitos maniqueístas são convertidos e batizados (canto inferior direito).
Destaca-se o anacronismo incorrido pelo artista. Santo Agostinho é representado como bispo, quando os episódios aqui reproduzidos ocorreram no ano 392 e são, portanto, anteriores à sua ordenação episcopal (395).
Translação do Corpo de Agostinho
“Depois que Santo Agostinho morreu, os fiéis recolheram seu corpo e, para evitar que caísse nas mãos dos bárbaros que invadiram toda aquela terra e profanaram as igrejas e os objetos sagrados, o transferiram para a Sardenha.
Duzentos anos depois, isto é, por volta de 718 d.C., Liuprando, piedoso rei dos lombardos, ao saber que os sarracenos haviam devastado esta ilha, enviou-lhe alguns de seus emissários para remover os restos mortais do santo Doutor e levá-los para Pavia. Esses emissários tiveram que pagar pelo venerável corpo uma quantia considerável de dinheiro, mas conseguiram resgatá-lo e o levaram para Gênova. em contínua manifestação de alegria, o corpo de Santo Agostinho foi levado de cidade em cidade de Gênova a Pavia, sendo finalmente depositado e reverentemente colocado na chegada ao seu destino na igreja de São Pedro, popularmente conhecida como o Céu de ouro” (VORÁGINE, p. 542).
Ele se desdobra em dois baixos-relevos, que mostram duas cenas cada uma em paralelo. A sequência vai da direita para a esquerda: primeiro, a travessia marítima; em seguida, a viagem terrestre para Pavia.
À direita, acima, um barco no porto da Sardenha. Um rei (Luiprando), um bispo (Pedro de Pavia) e um religioso. Os mesmos que aparecem na metade inferior, no navio que, com a âncora levantada e com as velas desdobradas, zarpa da ilha com os restos sagrados de Agostinho.
Tanto o Rei como o Bispo continuam a presidir a translação no painel esquerdo. Em uma solene procissão de religiosos e fiéis, o corpo do Santo é carregado nos ombros e introduzido primeiro em Pavia (abaixo) e depois em San Pietro in Ciel d’Oro (acima).
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